Introdução
Este livro é resultado de três anos de pesquisas do Laboratório de
Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip). Trata-se de
um laboratório interdepartamental da Universidade de São Paulo que
congrega pesquisadoras e pesquisadores do Instituto de Psicologia e do
Departamento de Filosofia. Seu objetivo principal é analisar as clínicas
do sofrimento psíquico a partir de abordagens capazes de mobilizar de
modo articulado a crítica social, a crítica do sujeito e as críticas das
formas históricas de racionalidade. O trinômio “teoria social, filosofia,
psicanálise” organiza, a nosso ver, o eixo fundamental da abordagem
crítica da contemporaneidade, por expor as dinâmicas de poder em seu
ponto de contato entre racionalização social, instauração da vida psíquica
e padrões gerais de racionalidade.
A escolha em abordar o neoliberalismo não apenas como modelo
socioeconômico, mas também como gestor do sofrimento psíquico se
impôs a nós como resultado da natureza disciplinar de seu discurso, no
qual categorias morais e psicológicas são constantemente utilizadas como
pressupostos silenciosos da ação econômica. Ações econômicas são
justificadas nem sempre devido à sua eficácia propriamente econômica
na produção e circulação de riquezas, mas devido à sua pretensa justeza
moral na realização social da liberdade — conceito esse de liberdade,
como veremos, assentado na generalização irrestrita da forma-propriedade
e que encontra suas raízes na noção liberal da liberdade
como propriedade de si. Nesse sentido, o neoliberalismo, com suas doses
maciças de intervenção estatal no campo político e social, aparece como
uma engenharia social para uma noção de liberdade pouco discutida.
Procuramos mostrar como essa redução da liberdade ao exercício
livre da propriedade não é apenas peça decisiva na despolitização da
sociedade e na criminalização de seus conflitos. Ela é uma forma de
gestão psíquica, de produção de figuras da subjetividade com seus
padrões de ação e, principalmente, de sofrimento. Não é um mero acaso
que a ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 tenha sido
acompanhada pela reformulação brutal da gramática do sofrimento
psíquico através da hegemonia do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais, em sua terceira edição (DSM-IID. Há relações
profundas entre os experimentos de engenharia social do neoliberalismo
e a reconstrução das estruturas categoriais clínicas, reconstrução que se
expressa, principalmente, com o apagamento das neuroses, com a
hegemonia da depressão, com a redução da psicose à forma unitária da
esquizofrenia, com a consolidação dos transtornos borderline e,
finalmente, com a substituição da clínica tradicional, restrita ao
tratamento de doenças, pela lógica do enhancement, que começa a
explorar cada vez mais os fármacos, inicialmente concebidos para o
sofrimento psíquico, em um novo objetivo, aquele da potencialização de
performances no trabalho. O que esse conjunto de transformações torna
manifesto é que categorias clínicas dependem de sistemas de valores
sociais exteriores à clínica. Tais processos, que expressam a colonização
da clínica pelos modos de racionalização econômicos, foram analisados
de forma detalhada neste livro.
Nesse sentido, a noção de “gestor” do sofrimento psíquico ganha
importância em dois sentidos, a saber, como aquele que gera e aquele
que gerencia. Pois o sofrimento psíquico é não apenas produzido, mas
também gerido pelo neoliberalismo. Por isso, cabe compreender o
neoliberalismo como uma forma de vida nos campos do trabalho, da
linguagem e do desejo. Como tal ele compreende uma gramática de
reconhecimento e uma política para o sofrimento. Enquanto liberais
clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, consideravam
que o sofrimento, seja do trabalhador, seja do cidadão, era um problema
que atrapalhava a produção e criava obstáculos para o desenvolvimento e
para o cálculo da felicidade, como máximo de prazer com mínimo de
desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais
produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor
aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de
cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no
projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se
regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um
balanço e uma métrica.
É por tais razões que este livro aborda o neoliberalismo não apenas
como uma teoria sobre o funcionamento da economia, desenvolvida
entre 1930 e 1970, por Von Mises, Hayeck, Friedman e Becker, mas
também como uma forma de vida definida por uma política para a
nomeação do mal-estar e por uma estratégia específica de intervenção
com relação ao estatuto social do sofrimento. Essa forma de vida articula
moral e psicologia, economia e direito, política e educação, religião e
teologia política, propondo um tipo de individualização baseado no
modelo da empresa. Uma vida que deve ser apreendida, dirigida e
avaliada como se o faz com uma empresa. Mas essa análise de risco, esse
cálculo de decisões e essa administração de si presume uma psicologia
implícita. A arqueologia dessa psicologia nos levará ao problema da
instauração da vida psíquica no interior do liberalismo, envolvendo
premissas sobre a determinação do sofrimento psíquico e seu
consequente tratamento.
Podemos falar em “instauração” porque a força do neoliberalismo é
performativa. Ela não atua meramente como coerção comportamental,
ao modo de uma disciplina que regula ideais, identificações e visões de
mundo. Ela molda nossos desejos, e, nesse sentido, a performatividade
neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação e
produção do sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de
vida por meio dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios, e
não apenas o que eles representam de si próprios. Se admitimos que uma
forma de vida tende a manter sua unidade extraindo produtividade de
suas contradições, determinadas e indeterminadas, de acordo com
estratégias provenientes do trabalho e do mercado, do desejo e da
linguagem, poderemos localizar os efeitos estruturais da dimensão
performativa da gestão neoliberal do sofrimento.
Tomamos o conceito de sofrimento como uma noção-chave para
nossos propósitos, porque ele localiza-se de modo intermediário entre,
por um lado, os sintomas e sua regularidade clínica e, por outro lado, o
mal-estar e suas conflitivas existenciais. Nem todo sintoma nos faz sofrer,
e nem toda forma de sofrimento é um sintoma. Determinar qual
sofrimento é legítimo e qual não é, portanto, é uma questão não apenas
clínica, mas também política. Por isso esta pesquisa tenta isolar qual seria
a política específica que o neoliberalismo desenvolve com relação ao
sofrimento.
Essa perspectiva foi aberta por nossa pesquisa anterior, em que nosso
interesse na mutação de formas de sofrimento foi sinalizado pelo estudo
precedente sobre Patologias do social: uma arqueologia do sofrimento
psíquico, no qual mapeamos a relação intrínseca entre o destino das
principais modalidades diagnósticas na modernidade em sua relação com
gramáticas de reconhecimento e impasses de individualização. Naquela
pesquisa coletiva, percebemos diferentes metamorfoses dos sistemas de
diagnóstico, desde a psicopatologia clássica do século XIX, passando pela
psicanálise e chegando aos grandes sistemas classificatórios, como o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), editado
pela Associação Americana de Psiquiatria, e a Classificação Internacional
de Doenças (CID), coligido pela Organização Mundial de Saúde. Cada
forma de psicopatologia se mostrava compatível com uma política de
sofrimento que, por exemplo, confirmava e replicava políticas específicas
em termos de modos de subjetivação. Diante disso, é possível dizer que
cada época prescreve a maneira como devemos exprimir ou esconder,
narrar ou silenciar, reconhecer ou criticar modalidades específicas de
sofrimento. Isso explica a emergência e o declínio sazonal de
determinados quadros clínicos em detrimento de outros. Isso se tornou
assombrosamente explícito quando, no contexto do neoliberalismo,
encontramos manuais e estratégias para literalmente confeccionar novas
doenças, para as quais se dispõe de novas medicações.
Em resumo: menos do que expressões culturais modificadas de uma
mesma essência biológica causal, buscamos demonstrar como a ascensão
e o declínio de formas de nomeação do sofrimento psíquico possuem e
refletem um valor etiológico na determinação deste. Tal perspectiva
implica tomar tais formas de nomeação como equivalentes de certos
fenômenos que só se podem obter em situação experimental, em
laboratório, na dependência de recursos indutores e que jamais
ocorreriam livremente na natureza. Em outras palavras, a forma como
uma cultura escolhe nomear e narrativizar o sofrimento psíquico, a
maneira como ele é incluído ou excluído por determinados discursos, o
modo como ele reconhece sujeitos para certas demandas e estados
informulados de mal-estar possuem valor etiológico, tanto quanto as
determinações orgânicas. A maneira como interpretamos o sofrimento,
atribuindo-lhe causalidade interna ou externa, imputando-lhe razões
naturais ou artificiais, agregando-lhe motivos dotados ou desprovidos de
sentido, muda literalmente a experiência mesma de sofrimento. Isso é
crucial na determinação dos sintomas e condiciona eventualmente sua
reversibilidade clínica. O corpo sempre foi essencialmente plástico frente
à cultura, e hoje é caro que mesmo os processos
neurodesenvolvimentais, os moduladores químicos e os
neurotransmissores não continuam a agir da mesma maneira em
diferentes situações sociais alterando e modulando seus processos de
acordo com diferentes discursos.
As transformações clínicas não descrevem assim apenas alterações
expressivas nos modos culturais de sofrer, chamados de patoplastias na
história da psicopatologia. Mudanças nas operações de linguagem, tais
como narrativização, nomeação, metaforização ou alegorização, possuem
força de determinação da vida psíquica em sua integralidade. Controlar a
gramática do sofrimento é um dos eixos fundamentais do poder.
Safatle, Vladimir; Dunker, Christian. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Vladimir Safatle Nelson da Silva Junior Christian Dunker (Orgs.), Autêntica, 2021.
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