domingo, 28 de março de 2021

Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico - Introdução

 Introdução


Este livro é resultado de três anos de pesquisas do Laboratório de

Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip). Trata-se de

um laboratório interdepartamental da Universidade de São Paulo que

congrega pesquisadoras e pesquisadores do Instituto de Psicologia e do

Departamento de Filosofia. Seu objetivo principal é analisar as clínicas

do sofrimento psíquico a partir de abordagens capazes de mobilizar de

modo articulado a crítica social, a crítica do sujeito e as críticas das

formas históricas de racionalidade. O trinômio “teoria social, filosofia,

psicanálise” organiza, a nosso ver, o eixo fundamental da abordagem

crítica da contemporaneidade, por expor as dinâmicas de poder em seu

ponto de contato entre racionalização social, instauração da vida psíquica

e padrões gerais de racionalidade.


A escolha em abordar o neoliberalismo não apenas como modelo

socioeconômico, mas também como gestor do sofrimento psíquico se

impôs a nós como resultado da natureza disciplinar de seu discurso, no

qual categorias morais e psicológicas são constantemente utilizadas como

pressupostos silenciosos da ação econômica. Ações econômicas são

justificadas nem sempre devido à sua eficácia propriamente econômica

na produção e circulação de riquezas, mas devido à sua pretensa justeza

moral na realização social da liberdade — conceito esse de liberdade,

como veremos, assentado na generalização irrestrita da forma-propriedade 

e que encontra suas raízes na noção liberal da liberdade

como propriedade de si. Nesse sentido, o neoliberalismo, com suas doses

maciças de intervenção estatal no campo político e social, aparece como

uma engenharia social para uma noção de liberdade pouco discutida.


Procuramos mostrar como essa redução da liberdade ao exercício

livre da propriedade não é apenas peça decisiva na despolitização da

sociedade e na criminalização de seus conflitos. Ela é uma forma de

gestão psíquica, de produção de figuras da subjetividade com seus

padrões de ação e, principalmente, de sofrimento. Não é um mero acaso

que a ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 tenha sido

acompanhada pela reformulação brutal da gramática do sofrimento

psíquico através da hegemonia do Manual Diagnóstico e Estatístico de

Transtornos Mentais, em sua terceira edição (DSM-IID. Há relações

profundas entre os experimentos de engenharia social do neoliberalismo

e a reconstrução das estruturas categoriais clínicas, reconstrução que se

expressa, principalmente, com o apagamento das neuroses, com a

hegemonia da depressão, com a redução da psicose à forma unitária da

esquizofrenia, com a consolidação dos transtornos borderline e,

finalmente, com a substituição da clínica tradicional, restrita ao

tratamento de doenças, pela lógica do enhancement, que começa a

explorar cada vez mais os fármacos, inicialmente concebidos para o

sofrimento psíquico, em um novo objetivo, aquele da potencialização de

performances no trabalho. O que esse conjunto de transformações torna

manifesto é que categorias clínicas dependem de sistemas de valores

sociais exteriores à clínica. Tais processos, que expressam a colonização

da clínica pelos modos de racionalização econômicos, foram analisados

de forma detalhada neste livro.


Nesse sentido, a noção de “gestor” do sofrimento psíquico ganha

importância em dois sentidos, a saber, como aquele que gera e aquele

que gerencia. Pois o sofrimento psíquico é não apenas produzido, mas

também gerido pelo neoliberalismo. Por isso, cabe compreender o

neoliberalismo como uma forma de vida nos campos do trabalho, da

linguagem e do desejo. Como tal ele compreende uma gramática de

reconhecimento e uma política para o sofrimento. Enquanto liberais

clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, consideravam

que o sofrimento, seja do trabalhador, seja do cidadão, era um problema

que atrapalhava a produção e criava obstáculos para o desenvolvimento e

para o cálculo da felicidade, como máximo de prazer com mínimo de

desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais

produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor

aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de

cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no

projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se

regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um

balanço e uma métrica.


É por tais razões que este livro aborda o neoliberalismo não apenas

como uma teoria sobre o funcionamento da economia, desenvolvida

entre 1930 e 1970, por Von Mises, Hayeck, Friedman e Becker, mas

também como uma forma de vida definida por uma política para a

nomeação do mal-estar e por uma estratégia específica de intervenção

com relação ao estatuto social do sofrimento. Essa forma de vida articula

moral e psicologia, economia e direito, política e educação, religião e

teologia política, propondo um tipo de individualização baseado no

modelo da empresa. Uma vida que deve ser apreendida, dirigida e

avaliada como se o faz com uma empresa. Mas essa análise de risco, esse

cálculo de decisões e essa administração de si presume uma psicologia

implícita. A arqueologia dessa psicologia nos levará ao problema da

instauração da vida psíquica no interior do liberalismo, envolvendo

premissas sobre a determinação do sofrimento psíquico e seu

consequente tratamento.


Podemos falar em “instauração” porque a força do neoliberalismo é

performativa. Ela não atua meramente como coerção comportamental,

ao modo de uma disciplina que regula ideais, identificações e visões de

mundo. Ela molda nossos desejos, e, nesse sentido, a performatividade

neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação e

produção do sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de

vida por meio dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios, e

não apenas o que eles representam de si próprios. Se admitimos que uma

forma de vida tende a manter sua unidade extraindo produtividade de

suas contradições, determinadas e indeterminadas, de acordo com

estratégias provenientes do trabalho e do mercado, do desejo e da

linguagem, poderemos localizar os efeitos estruturais da dimensão

performativa da gestão neoliberal do sofrimento.


Tomamos o conceito de sofrimento como uma noção-chave para

nossos propósitos, porque ele localiza-se de modo intermediário entre,

por um lado, os sintomas e sua regularidade clínica e, por outro lado, o

mal-estar e suas conflitivas existenciais. Nem todo sintoma nos faz sofrer,

e nem toda forma de sofrimento é um sintoma. Determinar qual

sofrimento é legítimo e qual não é, portanto, é uma questão não apenas

clínica, mas também política. Por isso esta pesquisa tenta isolar qual seria

a política específica que o neoliberalismo desenvolve com relação ao

sofrimento.


Essa perspectiva foi aberta por nossa pesquisa anterior, em que nosso

interesse na mutação de formas de sofrimento foi sinalizado pelo estudo

precedente sobre Patologias do social: uma arqueologia do sofrimento

psíquico, no qual mapeamos a relação intrínseca entre o destino das

principais modalidades diagnósticas na modernidade em sua relação com

gramáticas de reconhecimento e impasses de individualização. Naquela

pesquisa coletiva, percebemos diferentes metamorfoses dos sistemas de

diagnóstico, desde a psicopatologia clássica do século XIX, passando pela

psicanálise e chegando aos grandes sistemas classificatórios, como o

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), editado

pela Associação Americana de Psiquiatria, e a Classificação Internacional

de Doenças (CID), coligido pela Organização Mundial de Saúde. Cada

forma de psicopatologia se mostrava compatível com uma política de

sofrimento que, por exemplo, confirmava e replicava políticas específicas

em termos de modos de subjetivação. Diante disso, é possível dizer que

cada época prescreve a maneira como devemos exprimir ou esconder,

narrar ou silenciar, reconhecer ou criticar modalidades específicas de

sofrimento. Isso explica a emergência e o declínio sazonal de

determinados quadros clínicos em detrimento de outros. Isso se tornou

assombrosamente explícito quando, no contexto do neoliberalismo,

encontramos manuais e estratégias para literalmente confeccionar novas

doenças, para as quais se dispõe de novas medicações.


Em resumo: menos do que expressões culturais modificadas de uma

mesma essência biológica causal, buscamos demonstrar como a ascensão

e o declínio de formas de nomeação do sofrimento psíquico possuem e

refletem um valor etiológico na determinação deste. Tal perspectiva

implica tomar tais formas de nomeação como equivalentes de certos

fenômenos que só se podem obter em situação experimental, em

laboratório, na dependência de recursos indutores e que jamais

ocorreriam livremente na natureza. Em outras palavras, a forma como

uma cultura escolhe nomear e narrativizar o sofrimento psíquico, a

maneira como ele é incluído ou excluído por determinados discursos, o

modo como ele reconhece sujeitos para certas demandas e estados

informulados de mal-estar possuem valor etiológico, tanto quanto as

determinações orgânicas. A maneira como interpretamos o sofrimento,

atribuindo-lhe causalidade interna ou externa, imputando-lhe razões

naturais ou artificiais, agregando-lhe motivos dotados ou desprovidos de

sentido, muda literalmente a experiência mesma de sofrimento. Isso é

crucial na determinação dos sintomas e condiciona eventualmente sua

reversibilidade clínica. O corpo sempre foi essencialmente plástico frente

à cultura, e hoje é caro que mesmo os processos

neurodesenvolvimentais, os moduladores químicos e os

neurotransmissores não continuam a agir da mesma maneira em

diferentes situações sociais alterando e modulando seus processos de

acordo com diferentes discursos.


As transformações clínicas não descrevem assim apenas alterações

expressivas nos modos culturais de sofrer, chamados de patoplastias na

história da psicopatologia. Mudanças nas operações de linguagem, tais

como narrativização, nomeação, metaforização ou alegorização, possuem

força de determinação da vida psíquica em sua integralidade. Controlar a

gramática do sofrimento é um dos eixos fundamentais do poder.


Safatle, Vladimir;  Dunker, Christian. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.  Vladimir Safatle Nelson da Silva Junior Christian Dunker (Orgs.), Autêntica, 2021.

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