domingo, 27 de abril de 2025

Devir e Durée em Giles Deleuze

 O percurso filosófico de Gilles Deleuze para articular a durée bergsoniana e o devir nietzschiano não é uma mera justaposição, mas uma complexa operação de leitura, reinterpretação e criação conceitual. Deleuze não busca uma síntese harmoniosa, mas sim extrair de ambos os autores ferramentas para construir sua própria filosofia da diferença e do devir, muitas vezes radicalizando e deslocando os conceitos de seus contextos originais.

O caminho pode ser descrito da seguinte forma:

  1. Identificação de um Terreno Comum: A Crítica ao Ser e à Representação:

    • Tanto Bergson quanto Nietzsche representam, para Deleuze, momentos cruciais de ruptura com a tradição filosófica ocidental focada no Ser, na identidade, na permanência e na representação.

    • Bergson: Critica a espacialização do tempo, o pensamento analítico que divide o real em unidades estáticas, e a primazia do conceito sobre a intuição da continuidade fluida da durée. Ele oferece uma visão do tempo como heterogeneidade pura e criação contínua.

    • Nietzsche: Critica a metafísica do Ser, os valores transcendentes, a noção de sujeito uno e idêntico, e propõe o devir como a natureza fundamental da realidade, impulsionado pela Vontade de Potência e afirmado no Eterno Retorno.

    • Deleuze vê em ambos uma afirmação do fluxo, da mudança e da diferença contra as categorias estáticas da filosofia tradicional.

  2. Extração e Reconfiguração da 

    • Deleuze valoriza na durée não apenas a experiência subjetiva do tempo, mas principalmente sua natureza como diferenciação qualitativa contínua. A durée é heterogênea, o que significa que cada "momento" (embora a divisão seja artificial para Bergson) difere qualitativamente do anterior, não apenas quantitativamente.

    • Ele retém a ideia de virtualidade implícita na durée e na memória bergsoniana. O passado não deixa de existir, mas coexiste virtualmente com o presente, pressionando-o e participando da criação do novo. Para Deleuze, a durée revela o tempo como uma multiplicidade virtual que se atualiza incessantemente.

    • Deleuze, contudo, tende a ontologizar a durée. Enquanto em Bergson ela está fortemente ligada à consciência e à vida (embora com implicações cosmológicas), Deleuze a utiliza como modelo para pensar a diferenciação em todos os níveis da realidade, não apenas no psicológico. A durée fornece o modelo de um tempo como diferença interna, como processo imanente de variação.

  3. Extração e Reconfiguração do Devir Nietzschiano:

    • Deleuze toma de Nietzsche a afirmação radical do devir como força ontológica primordial. A realidade é fluxo, transformação, um jogo de forças (Vontade de Potência) sem um sujeito ou substância subjacente.

    • Ele enfatiza o caráter afirmativo do devir nietzschiano, especialmente através do Eterno Retorno, interpretado não como o retorno do mesmo, mas como a afirmação seletiva do próprio devir, de tudo que afirma a diferença e a potência.

    • O devir nietzschiano fornece a Deleuze a dimensão ativa, potente e diferencial da transformação. Não é apenas um fluxo passivo, mas uma dinâmica de forças em constante relação, produzindo diferenças.

  4. A "Síntese Diferencial" Deleuziana:

    • Deleuze não simplesmente soma Bergson e Nietzsche. Ele os utiliza para criar algo novo, uma filosofia do devir baseada na diferença.

    • durée bergsoniana oferece o modelo de como o devir opera: como uma variação contínua, qualitativa e imanente, uma diferenciação interna que não procede por oposição ou negação, mas por divergência e criação. É a ideia de um tempo heterogêneo e virtual que informa a natureza processual do devir.

    • devir nietzschiano fornece a amplitude ontológica e a força afirmativa a essa variação. O devir não está confinado à consciência, mas é a própria natureza do real, e deve ser afirmado em sua potência criadora e diferencial.

    • Resultado: O "devir" em Deleuze (frequentemente expresso como "devir-outro", "devir-animal", "devir-imperceptível") torna-se um conceito que une a continuidade diferencial da durée (um processo, um fluxo entre termos) com a afirmação nietzschiana da transformação radical e da dissolução das identidades fixas. É um processo imanente de variação contínua que opera por contágio, aliança, entre-tempos, e não por imitação ou identificação.

Tipo de Raciocínio Utilizado:

  • Leitura Sintomática e Criativa: Deleuze lê seus predecessores buscando não o "verdadeiro" Bergson ou Nietzsche, mas os conceitos e problemas que ressoam com suas próprias questões filosóficas. Ele extrai elementos, isola-os de seus contextos originais e os recombina.

  • Pensamento por Conexão e Agenciamento: Em vez de uma síntese dialética que supera contradições, Deleuze opera por conexões laterais, agenciamentos. Ele conecta a durée e o devir porque ambos apontam para uma realidade processual e diferencial, funcionando como componentes de uma nova "máquina" conceitual.

  • Criação Conceitual: O objetivo final é a criação de novos conceitos (diferença em si, virtual, multiplicidade, devir-, intensidade) que deem conta dessa realidade dinâmica. A durée e o devir são materiais brutos essenciais nesse processo criativo.

  • Imanência Radical: Todo o percurso visa construir uma filosofia da imanência, onde não há princípios transcendentes ou identidades fixas, apenas processos de diferenciação e devir. A articulação entre durée e devir serve a esse propósito fundamental de pensar um plano de imanência absoluto.

Em suma, Deleuze realiza uma operação filosófica sofisticada, utilizando a durée bergsoniana como modelo para a natureza processual e qualitativa da diferença temporal, e o devir nietzschiano para conferir a essa diferença uma dimensão ontológica radical, afirmativa e potente, resultando em sua própria filosofia do devir como variação contínua e criação imanente.


Deleuze sobre a Gênese Ontológica do Devir

Uma resposta filosófica em três movimentos: Espinosa, Nietzsche e Bergson


1. Espinosa: a imanência como condição absoluta

"Toda filosofia começa pela criação de um plano de imanência."

A gênese do devir não pode se dar senão em um plano absolutamente imanente. É por isso que começo por Espinosa. Ele não apenas recusa a transcendência do Deus criador, mas instala o Ser como potência de existir (conatus), como expressão de um único Substância. Em Espinosa, nada precede o ser em sua potência de afetar e ser afetado. Não há sujeito, não há forma, não há finalidade — há apenas modos de ser que variam em intensidade.

A consequência disso é ontológica: o ser não é o que é, mas o que pode. O ser é diferencial, e sua expressão é modulação contínua de potência. É nessa variação que o devir começa a se insinuar: não como transformação de uma substância, mas como variação intensiva de um modo.

O devir não é mudança de estado, é alteração da própria consistência do ser.

"Não perguntamos o que uma coisa é, mas o que ela pode." (Espinosa, Ética IIIP3-5)


2. Nietzsche: a diferença como potência afirmativa

"O devir não se reduz a um vir-a-ser. Ele é a própria positividade da diferença."

A segunda ruptura é nietzschiana. É aqui que o devir se torna ontologicamente ativo, não mais apenas como modulação intensiva, mas como afirmação da diferença. Nietzsche nos ensina que o pensamento ocidental, desde Platão, errou ao subordinar o devir ao ser — ao supor que a mudança é uma aparência e que só o imóvel é verdadeiro. A genealogia de Nietzsche é uma destruição dessa metafísica.

Mas mais que isso: Nietzsche introduz o Eterno Retorno não como repetição do mesmo, mas como retorno do diferente, aquilo que só retorna se for digno, se for potência ativa. O devir se torna aqui um princípio seletivo, uma ontologia da diferença que dispensa o Uno, o Idêntico, o Substancial. Em lugar disso, temos:

  • multiplicidade sem totalidade,

  • processos sem sujeitos,

  • forças sem forma prévia.

O devir é a afirmação disso tudo: o que acontece quando o pensamento rompe com a lógica da representação e entra em contato com a diferença em si.


3. Bergson: a duração como tempo da diferença real

"A diferença real só pode ser vivida na duração — a duração é devir puro."

Com Bergson, o devir encontra seu tempo próprio, sua temporalidade não cronológica, mas intensiva. A durée não é a sucessão de instantes homogêneos; é o tempo como fluxo contínuo e qualitativo, onde passado e presente coexistem, onde o real não é uma coleção de fatos, mas uma criação contínua. A durée dissolve o tempo espacializado, o tempo dos relógios, e o substitui por um tempo vivido que é inseparável da gênese do novo.

A duração bergsoniana fornece o ritmo do devir: não um vir-a-ser teleológico, mas uma vibração interna, uma modulação de forças que se cristaliza, se diferencia, se virtualiza. A realidade, para Bergson, não é o que é, mas o que advém. A ontologia, portanto, não se funda no ser, mas no tempo — não no que permanece, mas no que varia.


4. Conclusão: o Devir como categoria ontológica

Assim, meu caro, o devir se constitui como uma categoria ontológica não representacional. Não é gênero, espécie, substância, sujeito ou predicado. Ele é o que acontece entre — entre dois estados, entre dois modos, entre dois corpos, entre dois pensamentos. O entre é o lugar do devir: um intermezzo ontológico, uma zona de indiscernibilidade.

"Não se trata de parecer, de representar, ou de imitar. Trata-se de devires reais."

É por isso que falamos de devir-mulher, devir-animal, devir-imperceptível: não porque sejamos essas coisas, mas porque há linhas de fuga que atravessam o ser e o destituem de sua identidade. O devir é a máquina que produz diferenças sem essência, multiplicidades sem forma. Não é metáfora. Não é símbolo. É real ontológico.

Se há uma "anarquia", como o senhor disse — ela é uma anarquia da representação. Mas há um plano — o plano de consistência, onde tudo o que existe se conecta não por semelhança, mas por afinidade intensiva, por diferença em estado puro.


5. Referências fundamentais para aprofundamento

  1. Deleuze, G. (1966). Le Bergsonisme. Paris: Presses Universitaires de France.

  2. Deleuze, G. (1962). Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF.

  3. Deleuze, G. & Guattari, F. (1980). Mille Plateaux. Paris: Éditions de Minuit.

  4. Bergson, H. (1907). L'évolution créatrice. Paris: Félix Alcan.

  5. Espinosa, B. de. (1677). Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras.

  6. Nietzsche, F. (1883-85). Assim Falou Zaratustra; A Vontade de Potência.



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