É, por estes cristais bem recortados e este congelamento superficial, uma
continuidade que se escoa de maneira diferente de tudo o que já vi
escoar-se. É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele
que o segue e contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem
estados múltiplos quando, uma vez tendo-os ultrapassado, eu me volto
para observar-lhe os traços. Enquanto os experimentava, eles estavam tão
solidamente organizados, tão profundamente animados com uma vida
comum, que eu não teria podido dizer onde qualquer um deles termina,
onde começa o outro. Na realidade, nenhum deles acaba ou começa, mas
todos se prolongam uns nos outros (BERGSON, 1974, p. 22).
Bergson, segundo Deleuze (1989, p. 29), chega à noção de multiplicidade qualitativa não somente por oposição à multiplicidade numérica, mas a partir da distinção entre sujeito e objeto. O objeto é aquele que pode ser dividido infinitas vezes, sem se desnaturar, conseqüentemente, um objeto ao dividir-se somente muda de grandeza, não muda de natureza. Este objeto será chamado, então, de multiplicidade numérica, porque segue o modelo do número que se divide sem mudar de natureza. Mesmo que estas divisões não cheguem a se realizar, mas somente sejam pensadas como possíveis, o aspecto total do objeto não muda, pois somente o seu grau varia. Por outro lado, podemos pensar um tipo de "divisão" da duração psicológica ocorrendo no sujeito, num sentido metafórico e não espacial de divisão. A vida psíquica, apesar de contínua, é múltipla em seus aspectos, portanto, e de certa forma, divide-se para formar uma multiplicidade. Entretanto, esta divisão é muito especial porque a duração ao dividir-se muda de natureza; se não mudasse permaneceria homogênea e seria, então, uma multiplicidade numérica. A verdadeira duração é heterogênea e a cada divisão podemos no momento considerá-la como indivisível. Nesta divisão, que na realidade é uma mudança essencial, surge "o outro" sem que com isto venham a existir "muitos" no sentido numérico, porque os "muitos" estados fundem-se num só e cada novo estado de consciência toma conta da alma inteira, resultando num mesmo e único estado que dura. Assim, a multiplicidade qualitativa consegue conciliar características aparentemente divergentes da duração psicológica: a heterogeneidade e a continuidade.
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