Os conceitos de Tiquê e Autômaton surgem na obra de Jacques Lacan no contexto de sua releitura e aprofundamento da teoria freudiana sobre o inconsciente e a repetição. Lacan introduz esses termos no Seminário 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964), onde ele discute, entre outras coisas, a repetição e o papel da contingência e da lei na estrutura do sujeito. Esses conceitos são emprestados da filosofia aristotélica e reinterpretados por Lacan em termos psicanalíticos, sendo fundamentais para compreender a articulação entre o simbólico e o real.
Autômaton
O Autômaton refere-se à ordem simbólica, à repetição das redes de significantes que moldam a experiência do sujeito. Para Lacan, o autômaton representa a dimensão repetitiva do funcionamento psíquico, aquilo que Freud chamou de compulsão à repetição ("Wiederholungszwang"). Essa compulsão decorre da insistência dos significantes e da maneira como o sujeito é moldado pela linguagem e pelas leis simbólicas que organizam sua realidade.
No autômaton, encontramos a repetição mecânica e automática de padrões, como se o sujeito fosse compelido a reencontrar experiências passadas de forma ritualizada, marcada pela dimensão simbólica. Essas repetições estão ligadas a tentativas de dominar o trauma, de processar o que ficou inassimilável. A linguagem e o inconsciente estruturado como uma linguagem fazem parte dessa repetição, já que o sujeito é capturado pela rede de significantes que o antecede e o constitui.
Tiquê
A Tiquê, por outro lado, refere-se ao encontro com o real, com o que escapa à ordem simbólica e não pode ser totalmente representado ou repetido no autômaton. Esse real é o que Freud chamava de acaso, o encontro inesperado, traumático e contingente que não se encaixa nos padrões previsíveis e repetitivos da linguagem.
Lacan usa a Tiquê para falar da dimensão do contingente, do acaso, do que não pode ser previsto nem controlado pela ordem simbólica. Esse encontro traumático com o real é aquilo que fere o funcionamento habitual do autômaton e reintroduz o sujeito no ciclo da repetição, tentando sempre simbolizar ou dar sentido ao que é, por natureza, impossível de simbolizar completamente. O real, portanto, é o que causa o rompimento com o padrão simbólico, algo que não se submete às leis do significante e insiste em sua irrupção.
Contexto na Obra
Lacan introduz esses conceitos no contexto de sua discussão sobre o real, o simbólico e o imaginário, que são os três registros fundamentais de sua teoria psicanalítica. O autômaton pertence à esfera do simbólico, onde os significantes se repetem de forma aparentemente mecânica, enquanto a tiquê aparece como aquilo que rompe essa cadeia significante, marcando a irrupção do real.
Esse real lacaniano não é o mundo empírico dos fatos, mas o que não pode ser totalmente assimilado pela linguagem ou pelo simbólico. O real está ligado ao trauma e ao gozo, que são forças disruptivas no psiquismo humano. Portanto, o conceito de tiquê é essencial para entender a relação do sujeito com o real e a dificuldade de lidar com o que escapa à representação.
Lacan usa esses termos para aprofundar a reflexão sobre a natureza da repetição no trabalho clínico. Enquanto o sujeito repete, de forma simbólica, experiências significantes através do autômaton, ele também é marcado pela contingência do real, a tiquê, que o força a confrontar o inassimilável. É essa dialética entre repetição (autômaton) e contingência (tiquê) que estrutura a experiência subjetiva no pensamento lacaniano.
Resumo
- Autômaton: Refere-se à repetição simbólica, ao funcionamento mecânico da linguagem e dos significantes no sujeito. Está relacionado ao simbólico e à compulsão à repetição.
- Tiquê: É o encontro contingente com o real, aquilo que escapa à ordem simbólica e irrompe de maneira traumática e inesperada. Representa a dimensão do acaso e da contingência.
Esses conceitos são centrais na compreensão lacaniana da psicanálise, especialmente em como o sujeito é afetado pelas forças do simbólico e do real, revelando a complexidade da repetição e do trauma na subjetividade humana.
A noção de compulsão à repetição (ou Wiederholungszwang) é um conceito central na obra de Sigmund Freud e marca um ponto importante em seu desenvolvimento teórico. Freud discute essa ideia principalmente em seu texto "Além do Princípio do Prazer" (1920), onde a compulsão à repetição é apresentada como um fenômeno que desafia o princípio do prazer, uma das bases de sua teoria inicial.
Contexto Teórico
Antes de desenvolver a ideia da compulsão à repetição, Freud postulava que o funcionamento psíquico era regido pelo princípio do prazer, que busca a diminuição de tensões e o aumento de prazer. Nesse modelo inicial, o aparelho psíquico tenderia sempre a evitar o desprazer e a procurar estados de satisfação.
No entanto, ao estudar certos fenômenos clínicos, Freud se depara com situações em que o sujeito parecia repetir experiências dolorosas ou traumáticas, em vez de evitá-las. Isso levou Freud a revisar sua teoria e a postular a existência de um princípio além do prazer, algo que orienta o psiquismo na direção de uma compulsão à repetição, mesmo que essa repetição seja dolorosa ou desagradável.
Definição e Características
A compulsão à repetição refere-se à tendência observada no comportamento humano de repetir experiências, memórias e padrões de forma aparentemente automática, mesmo que essas repetições causem sofrimento. Freud observou que, em vez de buscar prazer ou alívio de tensões, o sujeito às vezes se engaja em comportamentos ou revive situações traumáticas como se estivesse preso a um ciclo de repetição.
Freud identificou a compulsão à repetição em vários contextos, como:
Nas neuroses traumáticas: Pacientes que passaram por traumas repetiam suas experiências traumáticas em sonhos ou em outros aspectos de sua vida psíquica. Isso foi observado em soldados que, após experiências de guerra, reviviam constantemente as cenas de horror em pesadelos, em vez de esquecer ou superar o trauma.
No jogo infantil: Freud também observa a repetição no comportamento infantil, como no caso do Fort/Da. Em sua análise, ele descreve como uma criança repetia o ato de jogar um objeto fora e recuperá-lo, representando, simbolicamente, a ausência e o retorno da mãe. Aqui, Freud vê uma manifestação lúdica da repetição como uma tentativa de dominar uma experiência traumática (a ausência da mãe).
Na transferência: No trabalho clínico, Freud nota que os pacientes repetem, na relação com o analista, aspectos de experiências passadas que são dolorosas ou conflituosas. Esse fenômeno, chamado transferência, faz parte do processo terapêutico, mas também mostra como os sujeitos tendem a repetir, em vez de lembrar conscientemente, os eventos que marcaram sua vida psíquica.
A Compulsão à Repetição e o Além do Princípio do Prazer
A descoberta da compulsão à repetição levou Freud a postular que existe algo no psiquismo que vai além da busca pelo prazer, uma força que orienta o sujeito para a repetição de situações traumáticas ou dolorosas. Isso desafia a ideia de que a mente busca apenas o prazer e sugere a existência de um impulso mais profundo, que Freud associou à pulsão de morte (Todestrieb).
Freud teoriza que a compulsão à repetição está ligada à pulsão de morte, uma força fundamental do psiquismo que busca o retorno ao estado inorgânico, ao nível de excitação zero. A compulsão à repetição seria, nesse sentido, uma tentativa do aparelho psíquico de repetir o trauma na tentativa de dominá-lo, mas também uma expressão do desejo de voltar a um estado de inércia anterior à vida.
Implicações da Compulsão à Repetição
A compulsão à repetição tem várias implicações para a psicanálise:
O funcionamento inconsciente: A compulsão à repetição demonstra que muitas das ações e escolhas dos sujeitos são movidas por forças inconscientes, que escapam ao controle racional e não são dirigidas pela busca de prazer imediato.
O trauma: Freud vincula a compulsão à repetição ao trauma, sugerindo que o trauma, por sua própria natureza, não pode ser facilmente simbolizado ou assimilado, e por isso tende a se repetir na vida do sujeito. Essa repetição é uma tentativa de integrar ou processar o que não foi compreendido no momento do acontecimento traumático.
A transferência no tratamento psicanalítico: A ideia de repetição também é central para o conceito de transferência, em que o paciente projeta no analista experiências passadas, repetindo padrões relacionais anteriores. Trabalhar com a transferência se torna uma maneira de trazer à luz as repetições inconscientes e, eventualmente, romper com elas.
Conclusão
A compulsão à repetição desafia a noção de que o psiquismo humano é sempre guiado pela busca de prazer e pela evitação do desprazer. Em vez disso, ela revela a presença de uma força mais profunda que impele o sujeito a repetir experiências dolorosas ou traumáticas, muitas vezes de maneira inconsciente. Freud identifica essa compulsão como um fenômeno que se liga tanto ao trauma quanto à pulsão de morte, e essa ideia se torna um ponto de inflexão em sua teoria psicanalítica, ampliando a compreensão da dinâmica do inconsciente e do papel do trauma na vida psíquica.
Para entrelaçar os conceitos lacanianos de Tiquê e Autômaton com a teoria freudiana da compulsão à repetição, utilizaremos o exemplo clássico do jogo infantil Fort/Da descrito por Freud. Nesse jogo, uma criança repetidamente joga um carretel para longe (fort – “longe”) e o traz de volta (da – “aqui”), simbolizando a ausência e o retorno da mãe.
O Jogo Fort/Da: A Perspectiva Freudiana
Freud introduziu o jogo Fort/Da em "Além do Princípio do Prazer" como um exemplo de compulsão à repetição e da tentativa do sujeito de dominar simbolicamente uma experiência traumática. No caso da criança, o jogo é uma resposta à ansiedade causada pela ausência da mãe. Através da repetição do ato de jogar e puxar o carretel, a criança encontra uma forma de simbolizar a perda, transformando um evento passivo (a ausência da mãe) em algo ativo (o controle sobre o carretel), o que Freud entende como uma tentativa de dominar o trauma.
A repetição no Fort/Da pode parecer contrária ao princípio do prazer, uma vez que a ausência da mãe é dolorosa, mas Freud argumenta que a compulsão à repetição vai além da busca pelo prazer imediato, ligando-se a uma tentativa inconsciente de assimilar o trauma e dominar a situação.
Autômaton e Tiquê no Fort/Da: A Perspectiva Lacaniana
Lacan, em sua releitura de Freud, traz os conceitos de Autômaton e Tiquê para iluminar o funcionamento dessa repetição. No jogo Fort/Da, podemos ver esses dois conceitos operando de maneiras distintas, mas complementares.
Autômaton
O Autômaton, como Lacan o define, é a dimensão repetitiva do simbólico, ligada à rede de significantes que estruturam a experiência do sujeito. No caso do Fort/Da, o movimento mecânico de jogar o carretel e trazê-lo de volta é repetido várias vezes, de forma quase automática. Isso exemplifica a repetição característica do autômaton: a criança está, através do jogo, reproduzindo o padrão simbólico de presença e ausência, tentando simbolizar o desaparecimento e o retorno da mãe.
O jogo, portanto, inscreve-se na lógica do simbólico, onde os significantes de “fort” (longe) e “da” (aqui) estão sendo repetidos como parte de uma tentativa de representar o que é, na verdade, um trauma para o psiquismo da criança. O ato de jogar e recuperar o carretel é uma metáfora simbólica para a presença e ausência da mãe, sendo essa repetição um exemplo claro de como o sujeito opera dentro do autômaton.
Tiquê
No entanto, o jogo Fort/Da não é apenas um exercício mecânico de repetição simbólica. Existe um elemento que escapa a essa repetição previsível, e é aqui que Lacan introduz o conceito de Tiquê. A Tiquê refere-se ao encontro contingente com o real, aquilo que não pode ser totalmente simbolizado ou previsto dentro da ordem do autômaton.
No jogo Fort/Da, o que a criança está tentando representar (e dominar) é justamente o trauma real da ausência da mãe, um evento que não pode ser totalmente absorvido pelo simbólico. A repetição do jogo é uma tentativa de simbolizar e dominar esse evento traumático, mas a irrupção do real (a ausência efetiva da mãe) nunca pode ser completamente resolvida pela repetição simbólica. A Tiquê, nesse contexto, é o encontro com esse real, com a falta da mãe, que escapa ao controle da criança e ao jogo simbólico.
Lacan propõe que essa dimensão do real é o que interrompe a repetição automática do autômaton, forçando o sujeito a tentar lidar com algo que não pode ser plenamente integrado ao simbólico. No caso da criança, embora ela repita o jogo na tentativa de simbolizar a ausência da mãe, essa ausência continua sendo um ponto de falha no sistema simbólico, um real que insiste em sua impossibilidade de ser completamente representado.
O Jogo como Estrutura Repetitiva e Trauma
A partir desse exemplo, podemos ver como compulsão à repetição freudiana e os conceitos lacanianos de Autômaton e Tiquê estão intrinsecamente ligados:
Autômaton: O jogo Fort/Da representa o autômaton no nível simbólico, onde a criança repete o ato de lançar e recuperar o carretel, recriando simbolicamente a ausência e o retorno da mãe. Isso reflete a compulsão à repetição freudiana, onde o sujeito tenta processar um trauma através de ações repetidas.
Tiquê: No entanto, essa repetição é sempre interrompida ou subvertida pela tiquê, o encontro contingente com o real (a ausência traumática da mãe), que não pode ser totalmente assimilado ou resolvido pela simples repetição simbólica. Isso revela o limite da capacidade do sujeito de simbolizar o real por meio do autômaton.
Compulsão à repetição: Freud identifica essa repetição como um esforço inconsciente de dominar o trauma, mas Lacan acrescenta que essa tentativa de domínio é sempre frustrada pela irrupção do real, ou seja, pelo que a linguagem (autômaton) não pode abarcar.
Assim, o jogo Fort/Da ilustra não apenas a compulsão à repetição como um mecanismo psíquico, mas também a tensão entre o que o sujeito pode simbolizar (autômaton) e aquilo que escapa à simbolização (tiquê). O jogo é uma tentativa de dominar o trauma da ausência, mas o real (tiquê) persiste como um elemento disruptivo, forçando o sujeito a repetir o gesto sem jamais obter um controle completo sobre a situação.
Conclusão
A compulsão à repetição, exemplificada no Fort/Da, pode ser vista tanto como uma tentativa de representar simbolicamente o trauma (autômaton) quanto como um encontro repetido com o real (tiquê), que não pode ser plenamente simbolizado. Freud e Lacan, ao entrelaçarem seus conceitos, nos mostram como a psique humana é marcada por essa dialética entre a repetição simbólica e o trauma real, revelando a complexidade da vida psíquica e o papel do inconsciente na organização das experiências do sujeito.
Referências Primárias
Freud, S. (1920). Além do Princípio do Prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
- Neste texto, Freud introduz a noção de compulsão à repetição e discute o jogo Fort/Da como um exemplo de como o psiquismo lida com o trauma.
Lacan, J. (1964). O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
- Aqui, Lacan apresenta e desenvolve os conceitos de Autômaton e Tiquê, explorando sua relação com a repetição, o real e a estrutura do inconsciente.
Referências Secundárias e Comentários
Nasio, J.-D. (1993). Os Grandes Conceitos da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
- Apresenta uma explicação acessível sobre os conceitos de Freud e Lacan, incluindo a compulsão à repetição e a questão da repetição no simbólico e no real.
Safatle, V. (2006). Lacan: Estruturalismo e Psicanálise. São Paulo: Publifolha.
- Discute a influência do estruturalismo na teoria lacaniana e aprofunda a noção de repetição na relação entre simbólico e real.
Miller, J.-A. (1996). Os paradigmas do gozo. In: Opção Lacaniana, n. 34. São Paulo: Eolia, 2000.
- Analisa a repetição em Lacan, articulando a relação entre gozo, real e autômaton.
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