CAPÍTULO III
O PANOPTISMO
Eis as medidas que se faziam necessárias, segundo um regulamento do fim do século
XVII, quando se declarava a peste numa cidade.(1)
Em primeiro lugar, um policiamento espacial estrito: fechamento, claro, da
cidade e da “terra”, proibição de sair sob pena de morte, fim de todos os animais
errantes; divisão da cidade em quarteirões diversos onde se estabelece o poder de um
intendente. Cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico; ele a vigia; se a
deixar, será punido de morte. No dia designado, ordena-se todos que se fechem em
suas casas: proibido sair sob pena de morte. O próprio síndico vem fechar, por fora,
a porta de cada casa; leva a chave, que entrega ao intendente de quarteirão; este a
conserva até o fim da quarentena. Cada família terá feito suas provisões; mas para o
vinho e o pão, se terá preparado entre a rua e o interior das casas pequenos canais de
madeira, que permitem fazer chegar a cada um sua ração, sem que haja comunicação
entre os fornecedores e os habitantes; para a carne, o peixe e as verduras, utilizam-se
roldanas e cestas. Se for absolutamente necessário sair das casas, tal se fará por
turnos, e evitando-se qualquer encontro. Só circulam os intendentes, os síndicos, os
soldados da guarda e também entre as casas infectadas, de um cadáver ao outro, os
“corvos”, que tanto faz abandonar à morte: é “gente vil, que leva os doentes, enterra
os mortos, limpa e faz muitos ofícios vis e abjetos”. Espaço recortado, imóvel,
fixado. Cada qual se prende a seu lugar. E, caso se mexa, corre perigo de vida, por
contágio ou punição.
A inspeção funciona constantemente. O olhar está alerta em toda parte: “Um
corpo de milícia considerável, comandado por bons oficiais e gente de bem”, corpos
de guarda nas portas, na prefeitura e em todos os bairros para tornar mais pronta a
obediência do povo, e mais absoluta a autoridade dos magistrados, “assim como
para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens”. Às portas, postos de vigilância;
no fim de cada rua, sentinelas. Todos os dias, o intendente visita o quarteirão de que
está encarregado, verifica se os síndicos cumprem suas tarefas, se os habitantes têm
queixas; eles “fiscalizam seus atos”. Todos os dias também o síndico passa na rua
por que é responsável; pára diante de cada casa; manda colocar todos os moradores
às janelas (os que habitassem nos fundos teriam designada uma janela dando para a
rua onde ninguém mais poderia se mostrar); chama cada um por seu nome; informase do estado de todos, um por um — “no que os habitantes serão obrigados a dizer a
verdade, sob pena de morte”; se alguém não se apresentar à janela, o síndico deve
perguntar a razão: “Ele assim descobrirá facilmente se escondem mortos ou
doentes”. Cada um trancado em sua gaiola, cada um à sua janela, respondendo a seu
nome e se mostrando quando é perguntado, é a grande revista dos mortos e dos
vivos.
Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente: relatórios dos
síndicos aos intendentes, dos intendentes aos almotacés ou ao prefeito. No começo
da “apuração” se estabelece o papel de todos os habitantes presentes na cidade um
por um; nela se anotam “o nome, a idade, o sexo, sem exceção de condição”; um
exemplar para o intendente do quarteirão, um segundo no escritório da prefeitura,
um outro para o síndico poder fazer a chamada diária. Tudo o que é observado
durante as visitas, mortes, doenças, reclamações, irregularidades, é anotado e
transmitido aos intendentes e magistrados. Estes têm o controle dos cuidados
médicos; e um médico responsável; nenhum outro médico pode cuidar, nenhum
boticário preparar os remédios, nenhum confessor visitar um doente, sem ter
recebido dele um bilhete escrito “para impedir que se escondam e se tratem, à
revelia dos magistrados, doentes do contágio”. O registro do patológico deve ser
constante e centralizado. A relação de cada um com sua doença e sua morte passa
pelas instâncias do poder, pelo registro que delas é feito, pelas decisões que elas
tomam.
Cinco ou seis dias depois do começo da quarentena procede-se à purificação
das casas, uma por uma. Manda-se sair todos os moradores; em cada cômodo
levantam-se ou penduram-se “os móveis e as mercadorias”; espalha-se perfume; ele
é queimado depois de bem fechadas as janelas, as portas e até os buracos de
fechadura que se enche de cera. Finalmente fecha-se a casa inteira enquanto se
consome o perfume; como na entrada, revistam-se os perfumadores “na presença
dos moradores da casa, para ver se eles não têm à saída qualquer coisa que não
tivessem ao entrar”. Quatro horas depois, os moradores podem entrar em casa.
1. L. de Montgommery, La Milice française, edição de 1636, p. 6-7.
Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. 288p.
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