quarta-feira, 1 de janeiro de 2020


Bem é já que estamos falando sobre cinismo eu queria começar com uma citação do Stalin, que é a seguinte:

"O que poderia ser necessidade para tal revolução linguística se demonstrarmos que a linguagem existente e a sua estrutura são fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema. A antiga superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no curso de alguns anos, a fim de dar livre curso o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. Mas como poderia uma linguagem existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de alguns anos, sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de desintegração da sociedade. Quem a não ser um Dom Quixote poderia dar a si mesmo tal tarefa?".

Então essas são palavras de Joseph Stalin a respeito de um debate que marcou época na antiga União Soviética. A questão girava em torno da relação entre linguagem e revolução. Uma revolução política modifica ou não a estrutura da linguagem?
Seria linguagem uma superestrutura, transformada quando rupturas sociais fundamentais ocorrem? Como se vê a resposta de Stalin é negativa. A vida da linguagem passaria ao largo das transformações econômicas e sociais. Ela pareceria ter uma espécie de neutralidade política, pois destruir uma linguagem existente e construir uma nova em seu lugar só poderia implicar na anarquia da vida social e na ameaça de desintegração da sociedade.
No entanto de certa forma Stalin tinha razão. Há uma anarquia, há uma quebra de arché[1], há uma eliminação da ilusão da origem e do fundamento quando uma linguagem que entra em dinâmica de ruptura. Nós poderíamos partir desse ponto a fim de nos perguntarmos sobre em que condições paralisações políticas ocorrem. Porque há momentos nos quais a imaginação política parece entrar em compasso de bloqueio, nas quais mesmo sendo atravessada por descontentamentos profundos, revoltas de toda ordem, sociedades parecem não ter mais força para se transformar. Não seria exatamente porque há uma linguagem nova que deveria emergir e, no entanto, ela não emerge. Ou seja, a linguagem não aparece como um motor de transformação política. É isso que gostaria de discutir nesse fechamento de um ciclo chamado "Impasses da Racionalidade".
Começamos com uma questão de princípio, pois nos perguntemos pelas condições de possibilidade daquilo que podemos chamar de lutas e conflitos sociais. Essas mesmas lutas e conflitos que fornece a base da experiência política. Não se trata aqui de operar nesse registro imediato da presença de experiências de sofrimento social e injustiça. Façamos uma questão ainda mais elementar, a saber, como sociedades traduzem experiências de sofrimento social? Como elas interpretam processos de injustiça?
Porque vejam há aqui uma questão vinculada necessariamente a dimensões de interpretação e de tradução. Nós podemos sentir sofrimento, mas há um exercício suplementar que consiste em traduzi-los sob a forma de uma demanda social, interpretá-lo sob a forma de ações coordenadas. Uma sociedade é fundada entre outras coisas numa gramática de inscrição de experiências sociais de sofrimento em modos específicos de articulação de demandas. Eu insisto nesse ponto porque eu creio que se trata de salientar a existência de algo que nós poderíamos chamar de gramática social de conflitos. Essa gramática é condição da possibilidade para toda experiência política. Tal gramática determina a forma possível das demandas e das lutas. Ela configura a estrutura dos sujeitos políticos e define as modalidades gerais de agência possível.
Na verdade tal gramática determina os limites do que é possível e do que é impossível para uma sociedade realizar e imaginar. A gramática define o que pode ser ouvido e percebido, o que pode nos afetar e nesse sentido ela é similar a uma gramática linguística, com sua sintaxe, com a sua semântica e com os seus princípios gerativos. Eu insisto nesse aspecto porque uma questão fundamental consiste em se perguntar a respeito de qual gramática social de conflitos nós respeitamos? Qual gramática configura forma da nossa revolta?
 Eu gostaria de defender aqui a tese de que nós continuamos a respeitar a mesma gramática que define os modos normais de funcionamento dos nossos vínculos sócio políticos. Por isso as demandas de ruptura que nós enunciamos tendem a reiterar os modos gerais de determinação social.
Nós falamos a mesma linguagem daqueles contra os quais nós nos batemos, por isso nós podemos dizer que é uma gramática que se for fortalece agindo em nós, agindo através de nós, mesmo quando nós parecemos encenar nossa revolta e nosso desejo de ruptura.
Vladimir Maiakóvski dizia que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Nós podemos dizer algo semelhante não há política revolucionária sem forma linguística revolucionária. Uma forma capaz de romper a gramática social de conflitos hegemônica em nossas sociedades. E para rompê-la é necessário apoiar-se naquilo que é gramaticalmente impossível. Fazer circular enunciados políticos gramaticalmente impossíveis que constituem enunciadores emergentes.
Nesse sentido uma questão fundamental seria o que atualmente é gramaticalmente impossível enunciar? É em direção ao ato de dar corpo a esse impossível que caminha a emergência dos processos de transformação social. Para tanto, tentemos traçar algumas coordenadas gerais do que seria a gramática de nossos conflitos sociais. O que nos obriga a pensar como se organiza os pressupostos fundamentais do que nós poderíamos chamar de horizonte de possibilidades imanentes às nossas democracias liberais.
Pois a tese que eu gostaria de defender aqui consiste em dizer que enunciados impossíveis são atualmente aqueles que são falas desprovidas de lugar, que abrem um campo de implicação genérica na qual todo e qualquer um pode assumir tal fala. Elas são falas marcadas por uma universalidade destituinte, ou seja, universalidade cuja emergência destitui as formas atuais de presença e de existência.
Os enunciados impossíveis são ainda aqueles que não são enunciados por sujeitos, mas por coisas em um animismo reverso. As situações sociais nas quais não são sujeitos que falam, mas são as coisas que falam dos sujeitos.
Para nós quando as coisas falam dos sujeitos isso significaria uma forma profunda de alienação, pois nesse caso eu seria como coisa como se eu estivesse em um estágio avançado de auto reificação.
No entanto, nós devemos nos perguntar se um dos eixos maiores de nossa servidão se encontra exatamente na ilusão de que tudo que é coisa deve ser compreendida como a figura mesma da ausência de liberdade e de ação. O que seria um mundo no qual as coisas agem em nós de forma livre? E para discutir esse ponto acho que faz se necessário se perguntar o que é possível dizer nossas democracias liberais.
Eu gostaria de defender que o eixo fundamental do horizonte de possibilidades imanentes às nossas democracias liberais não está no conceito de dêmos, de povo, ou seja, não está vinculada à questão: quem é o povo? Quem é aquele que fala como povo e do qual a legitimidade imanaria? O eixo fundamental está no conceito de kratos[2], de força, ligada ao exercício da soberania e do poder. Que tipo de força a democracia liberal reconhece? Como ela configura seus sujeitos? Como ela define a sua existência?
A tese a ser defendida aqui é que a força da democracia principalmente sua versão liberal tem três atributos fundamentais: primeiro ela expressão de uma ipseidade,[3] ela é o exercício de um estar junto e de pertencer a si mesmo. Como lembrará de Derrida o kratos na democracia é acima de tudo uma ipse[4].
Nesse sentido ele pode definir os modos de existência e organizar os regimes de fala a partir dos usos políticos da noção de identidade e de propriedade, já que na democracia a força é uma propriedade dos agentes e não o que lhes atravessa. As demandas sociais passam a existência como multiplicidade de demandas organizadas em sua enunciação identitária.
Nesse contexto, liberdade aparece como estar sob a jurisdição de si mesmo, pertencer a si mesmo, como uma autonomia conquistada. No entanto esse conceito de liberdade como identidade socialmente realizada e autonomia conquistada impede uma real organização de processos políticos que não visam a afirmação do potencial de deliberação e de escolha consciente dos sujeitos, mas que visa a transformação da agência, em uma abertura ao que se organiza de forma inconsciente.
Nesse horizonte não há espaço por exemplo para uma agência que não seja exatamente dos sujeitos, mas dos objetos. Perpetuasse assim, o dogma moderno de que a única forma de agência é aquela atribuída aos sujeitos e que a única forma possível de atribuição de agência aos objetos seria através das temáticas do fetichismo, da alienação e da reificação. Como se toda causalidade externa a determinar a ação dos sujeitos deve ser vista como alienação a ser combatida.
Essa é uma maneira de submeter a liberdade a noção de ser proprietário de si mesmo, impedindo a emergência não apenas de uma comunidade de sujeitos livres, mas mais importante, uma comunidade de sujeito e de coisas livres.
O que é a única realização social efetiva do conceito de liberdade, uma relação social na qual o sujeito e coisas estão livres, não submetidas a posse, a função e a unidimensionalidade.
Segundo ponto: o kratos da democracia é uma força que se realiza com a plasticidade da representação. A representação é a gramática que define o modo de existência das identidades no interior da democracia, ela é o dispositivo geral de organização do campo do comum. Nesse sentido mesmo que acontece em esferas anti-institucionais e não estatais tende a se realizar como representação, pois na democracia só o que representável pode existir.
Eu insistira nesse ponto, porque uma das ideias fundamentais da política moderna é a noção de representação. Nós aprendemos a compreender o espaço político como um espaço de conflitos organizados a partir de uma dinâmica específica de constituição de atores. Essa dinâmica ela estaria necessariamente ligada aos processos de representação.
Assim só poderiam participar do campo de conflitos políticos aqueles que se submeteram a representação, ou seja, aqueles que representam algo que fala em nome de um lugar que representam, seja esse lugar um grupo, um setor de interesse, um partido, uma associação, um gênero, em suma o pressuposto central aqui é “uma multiplicidade não se apresenta de forma imediata”, ela só pode existir como algo representado.
Várias consequências se seguem daí, por exemplo, dentro dessa visão uma sociedade plural seria aquela que permitiria a emergência de vários representantes e representações ao mesmo tempo. Quanto mais representações diversas, mais plural a sociedade, no entanto, por mais diversas que tais representações sejam elas devem partilhar algumas coisas em comum, pois a representação tem suas regras, têm seus modos de contagem, tem sua gramática, tem seus acordos. Aceitar sua gramática significa aceitar como as lutas se darão, em qual espaço, como os conflitos serão resolvidos. Nesse sentido existir politicamente é ao mesmo tempo, para tal forma de pensar, aceitar-se submeter a essas regras, a esses modos de contagem, a essa gramática e a esses acordos. A essa submissão nós chamamos, normalmente, democracia.
Por fim o kratos da democracia é uma força indissociável da internalização da sua própria suspensão, pois o funcionamento normal da democracia liberal exige que a força do dêmos seja restringida a espaços eleitorais, isso enquanto as múltiplas esferas das relações econômicas entre classes, das relações de trabalho, das relações de gênero e raciais, assim como os usos da força em situações excepcionais de insegurança são geridas a partir da violência e da anomia.
As conquistas das lutas sociais em relação às modificações do ordenamento jurídico tendo em vista a defesa de classes vulneráveis demonstram-se na democracia frágeis, provisórias e de alcance extremamente limitado.
A democracia não é, tal como nós a conhecemos até hoje, o regime de garantia da integridade dos sujeitos através do exercício da lei. Ela é o regime que possibilita múltiplas formas de suspensão da lei e de plasticidade de seus modos de aplicação. Não há democracia liberal sem violência disciplinar. Essa violência muda e não ordenada juridicamente nas fábricas, nas escolas, nos hospitais, nos campos. Violência das técnicas de recursos humanos, da ergometria das linhas de montagem, da dopagem contra o sofrimento psíquico.
Assim a democracia que nós conhecemos funda-se uma noção de força, compreendida como que se exercita enquanto identidade, como que passa a existência enquanto representação e como que é impotente diante da violência da sua própria negação sem retorno. Nesse sentido se nós estamos a discutir as modalidades de configuração da força própria democracia nós deveremos discutir as possibilidades de superar um exercício político baseado na identidade na representação e na negação interna de seu próprio ordenamento.
Isso nós queremos lutar por uma democracia por vir não aqui nós conhecemos até agora.
Levando-se em conta perguntemo-nos pelas formas com que os enunciados de resistência se organizam atualmente. O primeiro é evidente que eles assumem para si as estratégias de afirmação identitária uma identidade é um modo de determinação atributiva. O que define uma identidade são os predicados que o possui e que me singularizam. Esses predicados são propriedades do sujeito, ou seja, a existência do sujeito é definida pela soma de predicados dos quais ele é proprietário
Dentro desse horizonte o que me leva à existência são os predicados que me singularizam e que me dão visibilidade. Como se fosse questão de modificar a estrutura do poder através do ato de abrir espaço à identidades invisibilizados e imperceptíveis, ou seja, trata-se de modificar o horizonte do visível de ampliar o campo dos que têm voz, mas sem modificar a gramática que define o regime geral de falas e de visibilidade. Trata se de assumir o espaço dentro de um campo já estruturado que determina em que condições algo se torna visível
O resultado não poderia ser outro do que referendar o princípio mesmo que define a nossa sujeição, a saber, a ideia de que quem fala, fala apenas por si mesmo, apenas em nome do que é seu, do que é sua propriedade. Quem fala, fala a fim de fortalecer o que lhe é próprio, definir o horizonte do que são seus próprios atributos. Em última instância só há indivíduos proprietários.
A questão gira apenas em torno de quem são os proprietários reais quem tem o direito de ocupar lugares específicos de fala. A gramática da nossa experiência política é uma gramática de proprietários, mesmo quando ela fala em coletivos e propriedade comum, pois coletivos nesses casos acabam por se tornar generalizações identitárias baseadas muitas vezes na partilha de experiências gerais o sofrimento e violência. Propriedade comum é apenas uma outra forma de posse, uma posse da comunidade como indivíduo coletivo. O que demonstra como livrar-se da hegemonia da propriedade é uma operação muito mais complexa do que inicialmente poderia parecer.
Nesse ponto nós podemos nos perguntar como seria possível uma fala capaz de romper com tal gramática de propriedades e atributos que parece colonizar nossas formas de enunciados políticos. Pois uma fala dessa natureza poderia abrir espaço a outra forma de existência, uma existência radicalmente distinta daquela que se autoriza no interior de nossas formas hegemônicas de vida.
Eu gostaria de afirmar que isso só será possível através de uma nova recuperação de posições universalistas, mas para recolocar tal tópico em discussão há de se reorientar o que significa o universalismo nesse contexto.
Porque durante décadas toda perspectiva universalista foi vista como profundamente normativa e incapaz de dar espaço à produção de singularidades. Universalismo foi sinônimo de partilha geral de atributos e normas de constituição de um horizonte de homogeneidade, como se fosse questão de constituir conjuntos cujos elementos se define pela presença dos mesmos atributos e características.
Não foi difícil defender que se universalismo era no fundo uma estratégia colonial. Ele se baseava em uma noção de história mundial concêntrica e fundado em um solo europeu. Tudo se passava como se as experiências de emancipação e de conflitos sociais que ocorreram na Europa devessem ser paulatinamente repetidas em outras partes do globo, racionalizando a vida social a partir da generalização de um modelo cuja origem cuja matriz será sempre europeia. Ou seja, tudo se passava como se houvesse um movimento geral de ressonância do centro para as margens, com uma pedra que caiu em um rio.
É claro que esse modelo precisa sustentar uma visão de processo histórico marcado pelas dinâmicas de atraso e de antecipação. Algumas experiências sociais encontrariam-se atrasadas. Elas preservariam estruturas arcaicas que deveriam ser ultrapassadas através do contato com sociedades em um tempo avançado, pretensamente avançado. Sociedades que se anteciparam no interior de um processo geral de desenvolvimento.
O fundamento dessa estratégia concêntrica se encontra na elevação de uma sociedade de indivíduos a horizonte global de emancipação social. Essa que se constituiu na Europa a partir do século XVII. A figura do indivíduo que apareceu historicamente em solo europeu e que é resultado de uma profunda articulação entre temas teológicos, psicológicos e econômicos, seria o fundamento real das proposições universalistas. Como se as lutas sociais em várias partes do mundo fossem no fundo lutas de generalização da figura do indivíduo, com seus direitos, com as suas liberdades, com seus interesses. Elevação dessa figura à condição de vetor real de emancipação global.
O universalismo que conhecemos até agora não é apenas a tentativa de generalização de um horizonte social masculino, falocêntrico, branco e heteronormativo, ele é pior ainda.
Ele é a tentativa de generalização do indivíduo a modo geral de existência das subjetividades. A história universal não é apenas a história da universalização do capitalismo como um modo geral de produção. A despeito das várias estruturas distintas de desenvolvimento no interior do sistema centro-periferia. A história universal foi até agora a tentativa de generalização do indivíduo como forma de existência e de emancipação. E notemos que da teologia cristã o indivíduo trouxe a própria noção fundadora de autonomia, baseada na pretensa capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, ou seja, de ser causa de si mesmo. Um pouco como deus é a figura maior daquilo que unifica a vontade de ação, causa e efeito.
Da economia capitalista ele trouxe a noção de ação racional como maximização de interesses através do cálculo de aumento de prazer afastamento do desprazer. E nesse contexto nós podemos insistir que uma universalidade descolonial, porque ela é possível, seria ao mesmo tempo uma universalidade não concêntrica e radicalmente desidêntica e anti-predicativa.
O primeiro aspecto se vincular a uma outra noção de história universal. Há uma história universal (eu sei o peso de falar essas coisas, mas tudo bem) que não é a descrição irresistível de processos de contágio de lutas e experiências políticas que ocorrem inicialmente no centro do capitalismo mundial.
Na verdade há uma história mundial que não opera de forma concêntrica, mas que opera sob a forma de ressonância. Ela parte do princípio de que experiências de emancipação de liberdade estão presentes em todas as formas de vida dispersas geográfica e historicamente.
Essas formas podem entrar em ressonância, ou seja, experiências locais podem fazer ressoar experiências em outras localidades criando uma espécie de constelação. Ou seja, não se trata de contrapor a história universal a uma perspectiva que libera a força das localidades e das territorialidades singulares. Trata-se de contrapor uma falsa história universal à uma história mundial descolonial, capaz de colocar em pé de igualdade múltiplas emergências locais de tensões em direção à liberdade.
O que significa é claro que as experiências dispersas de liberdade não são indiferentes umas às outras elas se contaminam, mas só podem se contaminar no interior de uma história mundial.
Mas tentemos entender melhor nesse ponto o que significa dizer que uma democracia efetiva, uma democracia por vir, as coisas estariam livres.
Uma forma de pensar esse problema passa pela tentativa de compreender o que pode ser um kratos uma força que não seria mais a expressão da afirmação proprietária da auto-identidade. Um kratos que por isso mesmo não pode mais ser pensado como expressão do exercício associativo de indivíduos em defesa de seus sistemas de interesses ou da capacidade de deliberação comum própria a indivíduos associados.
Pensemos esse kratos em três níveis de relações sociais atrás a saber: a relação aos objetos, a relação aos sujeitos e a relação a si.  
(eu termino um pouco por aqui)
O primeiro desses níveis a saber, a relação aos objetos, é normalmente um nível mais negligenciado quando a questão de reflexões a respeito das dinâmicas de emancipação. Porque nós estamos profundamente colonizados pela ideia de que o trabalho produz o direito de posse.
Aquilo no qual o trabalho é meu. Um povo, como sujeito político coletivo, como um trabalhador coletivo, deveria também aparecer como proprietário dos objetos nos quais ele trabalha.
Seguindo esse esquema a emancipação social só poderia ser o ato de tomar possessão dos objetos cuja fonte de existência são o meu trabalho ou trabalho do povo do qual faço parte. Ou seja, coisas aparecem aqui como está a serviço de pessoas, como que pode ser submetido a uma relação de propriedade personalizada. Nós vemos aqui uma forma de emancipação que não escapa da generalização das relações de propriedade de usufruto conectado à propriedade e nesse sentido nós podemos dizer que apenas de uma sociedade de proprietários, em uma sociedade na qual estatuto fundamental de membro confunde-se com um estatuto de proprietário, só nessa sociedade que podem existir coisas.
Nas sociedades nas quais pessoas são livres o preço a pagar por tal liberdade é que as coisas estejam sujeitas à servidão. Assim se São Tomás afirmava que pessoa era o domínio no interior do qual a razão pôde expressar o domínio dos seus próprios atos, como autor dos seus próprios atos é porque para nós as coisas não agem, elas são ativadas por nós, mas nós podemos perguntar se o verdadeiro conceito de emancipação social não seria exatamente a noção de que uma sociedade de sujeito livres exige uma sociedade de sujeito e coisas livres.
Pois é possível que a emancipação das coisas seja a primeira condição para a emancipação dos sujeitos, o que nos obrigará a aceitar a existência de um kratos que vem das coisas, que a afecção das coisas nos sujeitos a partir de uma dimensão involuntária externa.  Como um país como o Brasil que criou a sua noção de desenvolvimento através da ilusão da tábula rasa de uma natureza a ser vencida, colonizada, como uma espécie de colonialismo interno, a ideia de que as coisas não são propriedades de ninguém é impensável. E o resultado pode ser o tipo de catástrofe que nós observamos a cada dia neste país.
Por outro lado falar emancipação das coisas significa que longe de serem instrumentos da afirmação das relações de possessão as coisas podem aparecer como que nos causa e como que haja em nós sem estar vinculado à vontade de uma pessoa, a deliberação de uma consciência. Um pouco como essas obras de arte que nos afetam sem serem exatamente a expressão da deliberação de uma pessoa, porque elas não são apenas a sedimentação dos circuitos de histórias que as compõem, elas são também a força dos seus corpos, dos seus materiais, dos caminhos das suas materialidades da sua vida própria.
Um kratos liberado da metafísica da propriedade seria o reconhecimento da força das coisas em nós em nossas ações. O exercício de tal kratos pode ser a condição para uma sociedade na qual objetos nos afetam em sua impropriedade, em sua inapropriação. Nós estamos a falar de uma sociedade na qual os objetos seriam inapropriáveis, na qual eles não seriam nem propriedade individual nem propriedade coletiva, mas a expressão de que vivemos em um circuito de objetos que nos afetam e não nos são próprios.
Uma sociedade democrática seria aquela na qual as coisas não existem mais na forma do que poderia ser possuído, daí porque a relação entre sociedade e natureza é tão fundamental dentro de um horizonte efetivo do que pode significar democracia. Nenhuma reconstituição da biopolítica que nos governa pode se realizar sem começar pela destituição da centralidade das relações de propriedade na definição da vida social.
Eu terminaria justamente dizendo que isso interfere na própria noção do que nós entendemos por sujeito, pois sujeitos teriam as marcas dos objetos que lhes afetam e que eles portam. O sujeito traria um núcleo do objeto em si mesmo o que modifica radicalmente o que nós entendemos por “si mesmo”.
Essa emergência de novos sujeitos políticos é inseparável de emergência de um sujeito descentrado. Os sujeitos descentradas pelo que aparece a eles como involuntário como “opa”, como um objeto. Tal descentramento nos obriga a repensar os paradigmas da decisão e da deliberação como cálculo de meios e fins que nos acompanha desde Aristóteles.
Por outro lado um kratos não mais conectado à força de permanecer idêntico a si mesmo seria um exercício de agir a partir do que nos despossui. Isso significa agir a partir do que desconstitui nossa formação como povo, pois essa força não constitui uma identidade coletiva, nem uma interdependência baseada na solidariedade necessária diante do reconhecimento de nossa vulnerabilidade.
Esse modelo baseado na cooperação de sujeitos autônomos ainda é muito dependente de um modelo de agência fundado no domínio de si, no domínio disciplinar de si por uma consciência definida como um sistema de interesses. Mas a política ela pode se tornar o espaço da desconstituição da identidade e da emergência de um comum que não é apenas a extensão limitada do potencial das relações humanas. Política como a integração do que até então foi compreendido como não humano como coisa.
Lembrem por exemplo como jovem Marx falava sobre uma conexão multilateral a natureza, de um metabolismo entre humano e natureza que poderia liberá-la da condição de mero objeto, abrindo a experiência social a formas diferentes de pensar a dialética entre natureza e história.
Lembrem como a revolução francesa só se transformou realmente uma revolução universalista quando os seus ideais foram tomados, foram enunciados por aqueles que até então eram vistos como coisas, como ex-escravos. Só nesse momento ela de fato foi uma revolução,  quando ela foi anunciada na França, mas no Haiti
Para concluir, eu só diria que seria necessário levar em conta o fato dessas proposições poder em sua muito genéricas para alguns, ainda mais agora, mas há de se argumentar que isso não é um problema. Adorno costumava dizer que a antecipação da forma de uma sociedade reconciliada é um atentado contra a própria reconciliação. Porque os sujeitos mutilados que nós somos não podem imaginar o que é liberdade social sem se servir de modelos de organização próprios a situação de guerra civil na qual nós vivemos nossas lutas cotidianas de classe, em nossas lutas cotidianas contra a violências própria as nossas democracias liberais ou em nossas lutas cotidianas contra estados necropolíticos como brasileiro.
Calar-se diante do que pode ser o governo de outro kratos não é impotência é uma confiança na força plástica da política e de sua multiplicidade local. A teoria pode nos levar a acreditar que nós temos o desejo e a capacidade de fazer muito mais do que nós fazemos até agora. A teoria pode nos dizer que nós não fomos ainda muito longe com a nossa negação, mas ela não pode antecipar o que recusa toda a projeção porque a teoria se abre diante do que apenas a prática emancipada em seus contextos locais pode produzir.
Era isso, muito obrigado.



[1] O princípio substancial ou substância primordial (a arché, em grego) existente em todos os seres materiais. Ou seja, pretendiam encontrar a "matéria-prima" de que são feitas todas as coisas.
[2] Como sempre, esses dois princípios, democracia e soberania, são ao mesmo tempo e sucessivamente indissociáveis e contraditórios entre si. Para que a democracia seja uma realidade, para que tenha um espaço para afirmar a sua ideia e tornar-se real, necessita do kratos (poder) do dêmos (povo) – no caso em pauta o dêmos global. Necessita, portanto, da soberania, ou seja, um poder maior do que todos os demais no mundo. (DERRIDA, Jacques. Voyous. Paris: Galilée, 2003, p. 12).
[3] Aquilo que é determinante para diferenciar um ser de outro(s); o atributo próprio, característico e único de um ser, que o difere dos demais.
[4] Ipse: demonstrativo, masculino; feminino: ipsa; neutro: ipsum
1.       mesmo
2.       próprio



Palestra do Vladimir Safatle no IV Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP (mesa de encerramento) - Impasses da Racionalidade23/08/2019 às 19h30

Transcrição automática feita pelo Google, sujeita a erros. Notas de rodapé, nossas.  

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