terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Entrevista com Gilles Deleuze, Félix Guattari e Raymond Bellour [gravação integral] na primavera de 1973, após a publicação de O anti-Édipo.


Entrevista com Gilles Deleuze, Félix Guattari e Raymond Bellour [gravação integral] na primavera de 1973, após a publicação de O anti-Édipo.


https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2018/08/07/entrevista-com-gilles-deleuze-felix-guattari-e-raymond-bellour-gravacao-integral-na-primavera-de-1973-apos-a-publicacao-de-o-anti-edipo/

Raymond Bellour: Quando se lê o dossiê de imprensa de O Anti-Édipo, o impressionante é que, com exceção de artigos de psicanalistas ou de “filósofos” como Domenach, os artigos sejam extremamente favoráveis ao livro. Como funciona o livro no interior da sociedade na qual ele é escrito? Será que ele funciona como uma válvula de escape suplementar? Ou, para retomar termos de vocês, como um axioma a mais?
Gilles Deleuze: Quem começa? Primeiramente, não concordo a tal ponto quanto ao caráter aprovador dos críticos, porque nessas críticas é preciso distinguir dois tipos de artigos: aqueles dos profissionais, os psiquiatras ou psicanalistas, e aqueles dos não-profissionais, os jornalistas, os críticos. A acolhida dos profissionais não me parece de modo algum agressiva, mas também não me parece favorável. Por que não são agressivos? Não é, evidentemente, para nos dar prazer, nem por causa das qualidades do livro, mas por razões totalmente outras. É que, nas condições atuais, eles se sentem na defensiva e só podem reagir a esse gênero de livro em função dessa defensiva. Eles sentem que o que dizemos não está somente em nosso livro, é {199} alguma coisa que era ressentida, ora pressentida, ora formulada por todo tipo de pessoas. Há toda uma geração de tipos jovens que estão em análise, que são mais ou menos coagidos pela análise, que continuam a ir a ela, que tomam isso como uma droga, um hábito, um emprego do tempo e, ao mesmo tempo, eles têm o sentimento de que isso não deslancha, que há toda uma imundície psicanalítica. Eles têm suficiente resistência à psicanálise para pensar contra ela, mas, ao mesmo tempo, eles pensam contra ela em termos ainda psicanalíticos. Isso forma uma espécie de rumor prévio e totalmente independente do nosso livro. Nosso livro é que é quase uma ramificação desse protesto contra a psicanálise e não o inverso. É isso que explica que os psicanalistas e os psiquiatras estejam numa posição defensiva.
Félix Guattari: Será que posso acrescentar alguma coisa? Tomando um certo recuo, a crise que agora se manifesta é uma crise diferida. Isso porque o lacanismo em particular, uma certa releitura de Freud, devindo estruturalista ao longo do seu curso, já era uma maneira de colmatar, de mascarar uma certa falência da psicanálise.
Deleuze: Colmatar, quer dizer, rearranjar as coisas, fornecer novos conceitos, trazidos por Lacan, para que a psicanálise consiga calar os protestos.
Bellour: De acordo, mas o que me toca é que jornalistas não-profissionais, sem conexão direta com a psicanálise, tenham podido se mostrar entusiastas e dizer: a gente esperava um livro como esse… A gente sabia que essa coisa não ia bem na sociedade etc.
Guattari: Qual é sua explicação?
Bellour: Minha explicação? Pergunto-me se, para uma certa camada da sociedade, esse livro não desempenha o papel de válvula de escape.
Guattari: Por que não imaginar que os tipos de que você fala estejam talvez morrendo de rir? Eles não podem tocar a caneta, coçar o nariz, por suas mãos nos bolsos sem que de pronto o psicanalista interprete…
Deleuze: Monte de gente reclama o direito ao lapso, o direito ao ato falho…
Guattari: O direito ao não-sentido…
Deleuze: Tenho um exemplo muito bom disso. Seria preciso distinguir três coisas: os profissionais de que acabamos de falar — psiquiatras e psicanalistas –, os artigos dos jornalistas que podem ser favoráveis ou hostis, e depois o que há de {200} mais importante para Félix e para mim, é o tipo de cartas que recebemos, isto é, as cartas de pessoas que penaram cinco ou dez anos junto a um psicanalista, que riram dele verdadeiramente e que nos escrevem: o que vocês dizem não é suficiente, não é nem um quarto do que seria preciso dizer. Há um tipo que me escreveu dando um exemplo típico do que Félix acaba de citar com interpretação psicanalítica. O tipo disse à sua psicanalista que ele queria partir para a Índia com um grupo hip, uma necessidade de fugir, e a psicanalista lhe responde de imediato: “grupo hip é pinto grande, veja bem que é sempre seu tema da impotência”. Há toda sorte de tipos que, neste momento, têm necessidade de se levantar e bater a porta. Eles não o fazem porque estão sujeitados, e isso, o que Félix disse, é muito importante. Eles já pensam contra a psicanálise, mas ainda guardam um cachê psicanalítico. Exemplo: eles querem criticar a psicanálise no nível do dinheiro, e isso é muito importante, mas continua muito insuficiente, porque a psicanálise está plenamente preparada para receber esse gênero de crítica. Ou então eles vão criticar a psicanálise no nível do direito às pulsões parciais, à perversidade, à regressão etc. Vocês me explicam que meu desejo de ser um travesti, um pederasta, é regressivo. Pois bem, eu reclamo o direito à regressão.
Guattari: O que eles não colocam em questão é a interpretação de todo fenômeno de não-sentido.
Deleuze: Que um pederasta ou um travesti não seja regressivo em nada, que seja preciso pensar esses problemas de modo totalmente outro, creio que isso é o que nosso livro começa um pouco, mas muito imperfeitamente. É isso que faz com que ele seja um livro que não vale por si mesmo, mas que está conectado com um movimento de protesto geral.
Bellour: O que vale para os autores dos artigos, vale igualmente para os leitores e pode permitir ao livro desempenhar esse papel de válvula de segurança de que falei.
Deleuze: Essa questão, eu a compreendo assim: será que é um livro já recuperado ou não? Isso me parece um falso problema. Ser recuperado me parece ser uma coisa que, em certas condições, não depende de modo algum do livro. Há livros que não são para serem recuperados, porque eles estão imediatamente num circuito já feito, eles são dados. Não creio que os livros nunca sejam recuperados se os autores não o quiserem. {201} Nosso livro será recuperado, evidentemente, se fizermos outro livro um pouco semelhante no mesmo sentido. Ele não o será se nós ambos, Félix e eu, conseguirmos continuar nosso trabalho e fizermos alguma coisa de completamente nova relativamente ao Anti-Édipo.
Bellour: Portanto, o efeito da moda…
Deleuze: Se formos os primeiros a quebrar esse efeito, sobretudo com a ajuda de outros, então, nesse momento, seremos irrecuperáveis.
Guattari: Há também um outro problema não concernente ao efeito-livro, mas que se situa no nível de um período de tempo mais longo. É que a psicanálise é uma coisa que vai bem, como uma droga do capitalismo. Não basta dizer: isso os separa do real, da política e do resto. Afinal de contas, é uma droga como outra, que encontra sua eficácia em seu próprio campo, um tipo de degradação, no sentido de degradação energética. A menos que, por ocasião de O Anti-Édipo ou de outros movimentos, se produza um fenômeno que ponha em circulação outras formas de apoio do desejo, mais coletivas, mais ramificadas no contexto, e suas implicações políticas; e que outras formas de análises se desenvolvam, análise de grupos que ultrapassem o indivíduo nos dois sentidos, para além e aquém. Ou então aparecerão manifestações que capturarão o investimento libidinal que atualmente se perde, se encalha na análise; e aí, bem entendido, a psicanálise será atingida.
Ou então nada disso acontecerá. Neste caso, tudo isso terá sido tão somente um transitório movimento de opinião, e os analistas retificarão a pontaria, darão um passo adiante ou um passo ao lado, para retomar as coisas. Por exemplo, só se distribui frivolidades nos cinemas em Paris. Não basta dizer: são frivolidades, para que as pessoas deixem de ir ao cinema. Trata-se de saber se haverá cinemas ou formas novas de atividade cinematográfica que enganchem as pessoas. {202} È todo um combate. Não está ganho só por termos feito um livro.
Deleuze: Não se vive esse livro como um livro, e as pessoas que o amam também não o vivem como um livro. Não se diz que é um livro, diz-se que é um elemento que se chama “livro” num conjunto exterior. Um livro não vale pela sua interioridade, pelas páginas que ele encerra, ele vale pela conexão com a multidão de conexões extra livro.
Bellour: Foi assim que eu o recebi. É por isso que eu quis que se falasse dele. Há livros que amo enquanto livros, mas esse eu não amei dessa maneira, eu o amei pelo efeito que ele produz, me produz.
Deleuze: Todos os nossos leitores favoráveis captaram que isso não valia como um livro. Isso não remetia o leitor às páginas interiores, mas a situações políticas, psiquiátricas, psicanalíticas exteriores. Naquele momento, como Félix acaba de dizer, a questão devém, de uma parte, a parte mais importante: como se desenvolverão essas situações exteriores e que papel se pode desempenhar aí acessoriamente; e, de outra parte — a parte menor — é saber o que faremos na próxima vez, Félix e eu, que não será semelhante ao primeiro tomo. Portanto, nada de válvula de escape.
Guattari: Nada de mensagem.
Deleuze: Nada de mensagem, nada de válvula de escape, nada de recuperação.

Bellour: Dois eixos se destacam para esta entrevista: um eixo interno. o dos conceitos postos em jogo no livro, e um eixo externo composto de um monte de questões concretas que eu me colocava fora do livro. Primeiro elemento conceitual: perguntei-me o que recobria essa noção de desejo posto como real absoluto, e sem falta. Será que o modo como vocês o fizeram funcionar não representa um nível de abstração muito grande relativamente ao modo de constituição da criança, e isso no nível mais originário, ao passo que, desde as primeiras semanas da vida da criança, percebe-se visivelmente que se coloca um certo número de elementos de falta. Como responder a isso?
Guattari: Isso é a pior abstração. Falta de quê? De vitaminas, de oxigênio? Isso é bem a mais abstrata noção que se possa imaginar! A falta-necessidade, a falta-instinto?
{203} Bellour: Tome o exemplo do seio ou da mamadeira. A partir do momento em que você tira, há uma reclamação. Que é essa reclamação? Será o desejo que aí se exprime? Será que a criança se exprime em termos de falta ou não? E isso sem remeter ao grande debate sobre a castração, mas somente a essa relação desejo-falta.
Deleuze: A questão de Raymond é muito importante, porque ele disse bem que desempenharia à vontade o papel do tolo; mas aí nós três estamos todos de acordo sobre isso: é que essa questão tem o ar simples, e que se a gente responde sim, há certamente uma falta, a criança tem necessidade do seio, ela carece de algo, nesse momento ser-nos-á impingido tudo até a castração e a falta do Bom Deus e…
Guattari: Sua questão está apodrecida. Porque, exatamente como na comunicação, já há uma entidade constituída como emissor, uma entidade constituída como receptor, e depois um truque que passa entre os dois. A partir do momento em que você parte dos três termos, você já tem toda a lógica: o pólo A que emite, o pólo B que recebe e alguma coisa transmitida de A a B. Assim que você retira um, falta aí um dos três. Isso é inevitável. É todo o sistema das multiplicidades, das intensidades como sistema de fluxo e de cortes, sistema que corta, retoma, codifica e descodifica o desejo que permite em seguida, mas somente em seguida, reconstituir esses pólos. Não há uma criança de um lado, uma mamãe de outro e depois um seio. Nada disso há nesse nível.
Deleuze: Quando dissemos que o desejo não era falta, mas produção, não queríamos dizer, evidentemente, que ele produzia seu próprio objeto. Não se quer dizer que a fome da criancinha produz e basta para produzir leite. Como todo mundo, sabemos que o desejo não produz seu objeto. O que dizemos é que a divisão objeto do desejo/pessoa distinta/sujeito desejante já implica um corte que pode vir do campo social, que pode vir também da natureza. É um corte sobre fundo de fluxos que fluem, e o desejo é, fundamentalmente, essa fluência de fluxos onde nada falta. Porém, que dois fluxos não se encontrem, por exemplo, que o fluxo de fome do bezerro e o fluxo de leite da vaca não se encontrem — isso acontece, como nós e todo mundo sabemos, no caso do bezerro que perdeu sua vaca. Mas nós dizemos que o desejo, em sua essência, são esses encontros ou não-encontros de fluxos, {204} assim como há fenômenos de desgosto, porque fluxos podem se encontrar e produzir efeitos de repulsa, ou então não se encontrar e, assim, produzir efeitos que são provados como faltas por um sujeito, e não pelo próprio fluxo, obviamente. Sabe-se muito bem que há faltas. Sabe-se mesmo que a sociedade é organizada para distribuir a falta em tal lugar, o excesso em tal outro lugar. De maneira alguma se diz que não há falta. Dizemos: os fenômenos de falta, isso não é o desejo.
Bellour: De acordo. A partir dai a mesma questão pode colocar-se num segundo nível: que importa esse desejo se ele é de tal modo fluídico, transpessoal, posto como real absoluto inapreensível, que ele falta ainda mais que a clássica falta psicanalítica, na medida em que, quanto mais pleno ele é, menos se pode acessá-lo?
Deleuze: Mas nada disso! Você fala como se os fluxos fossem imperceptíveis, mas nada disso! É que os fluxos de toda maneira, isso flui. Então, para apoiar sua ideia de falta, tomo um exemplo mais patético do que a vaca e seu bezerro: condições de seca, nas quais os animais já não encontram água e se põem a fugir, há um fluxo de seca, um fluxo de animais que fogem, há um fluxo de água ao longe, há uma busca etc. Um fluxo de seca é algo de absolutamente pleno, assim como um fluxo de animais, isso não carece de nada, é isso que existe. É isso que chamamos de real. De toda maneira, estamos nos fluxos, não somos pessoas em face de objetos. A ideia de fluxo não é um conceito, basta olhar qualquer coisa que flui, o leite, o mijo, o esperma, o dinheiro, é isso a realidade. Não se trata de dizer que isso nada muda. Ao contrário, dizemos: a vida é exatamente isso, é exatamente com isso que as pessoas vivem. Então, se elas se enchem por não saber isso, quer dizer, de estarem sempre à deriva de fluxos que lhes são os mais contrários, os mais dessecantes do mundo relativamente a elas, não é de modo algum porque a história dos fluxos nada muda, é porque elas vivem tão pouco na experiência dos fluxos que nada compreendem de coisa alguma. Elas buscam objetos, tomam-se como pessoas etc. Dizer-lhes: vocês são pequenos fluxos, e depois: cuidem-se; parece-me que de maneira alguma seja uma observação abstrata. Já é muito liberadora. Quando se vive como um fluxo em busca de outros fluxos, não se trata de falta.
{205} Guattari: Evidentemente, nem tudo é igual a tudo. A falta é importada toda vez que, na passagem de um fluxo a um outro, na mudança maquínica de um fluxo num outro, se mantenha a mesma categoria geral de existência acrescida de uma dialética, conforme um tipo de teoria do escoramento. Uma outra perspectiva consiste em dizer que em todos esses fluxos, conectados, em disjunção, em adjunção, há certos fluxos desterritorializados. Isso quer dizer que os fluxos criam entre si, não fenômenos de falta, mas tipos de deslocação que vão transportar o desejo de um fluxo a um outro. É isso que vai constituir, precisamente, a codificação dos fluxos. Dizendo de outra maneira, o movimento que transporta um ser de uma linha de fluxo a uma outra não é o resultado de alguma coisa que seria ressentida como faltando e que a levaria rumo a um fluxo substitutivo. Por exemplo, não é em razão de uma carência numa deiscência existencial, do fato da prematuridade ao nascimento, que um fluxo de amor vai se transportar rumo a fluxos de socialidade, de contato, de fala, de ruído, de calor humano que põem em jogo elementos de cadeias desterritorializadas.
Bellour: Bom, todas essas conexões, todos esses encontros etc., mas quando o sujeito se põe o problema de uma experiência de satisfação relativamente ao fluxo, isso reintroduz automaticamente o problema da falta, se lhe faltar o fluxo que lhe deve convir.
Deleuze: A isso devo responder que noções como as de satisfação, gozo são noções construídas em função de um desejo posto como falta. Falar de fluxo não é substituir um conceito por um outro, é uma outra maneira de viver o desejo. Quando alguém busca um objeto, uma pessoa que lhe “falte”, como se diz, e que ele não encontra, aí há não-satisfação, falta, decepção, tudo o que se quer. Mas quando são os fluxos que passam, e não as pessoas, os objetos, é toda uma outra maneira de viver. Em tal momento, creio que, mesmo quando não se encontra o fluxo ou os fluxos que convêm, de modo algum se vive isso sob forma de falta, Félix tem completamente razão, vive-se isso sob forma de fluxo e a partir de um outro fluxo, o fluxo de sua própria fuga a si, o fluxo de sua própria busca a si, que já não é uma falta. Quando, por exemplo, um animal sente água a dez quilômetros, não se pode dizer que ele careça de água, é preciso {206} dizer que ele é tomado por uma espécie de fluxo que o impulsiona a dirigir-se ruma à água. Suponhamos que ele não sinta esse fluxo de umidade que o guia, ele só tem a si, seus fluxos, e depois o fluxo de secura. Então, evidentemente, há dramas. Nunca dissemos que não havia dramas… Alguém que pensa e vive em termos de fluxo, creio que o que ele prova são movimentos de território, movimentos de desterritorialização, e não fenômenos de falta. De modo que, nos fluxos, o que conta não é de modo algum tal pessoa, tal objeto, tal eu {moi}. Todas essas noções devem ser refinadas; dizer “o sujeito não é a mesma coisa que o eu {moi}”, isso não nos importa. O que conta são as passagens de fluxos. Todo fluxo é como que acompanhado de algo que o faz passar, que o desvia rumo alhures quando há um obstáculo, como um fluxo de água. Mas um sujeito não é alguém que esteja diante de fluxos, ele próprio é um conjunto de fluxos. Se é como isso que se vive, o próprio fato de aprender a viver como isso, muda tudo da consciência e do inconsciente do desejo que se tem.
Guattari: Creio, entretanto, que é preciso desconfiar dessas comparações com os fluxos de água. Porque, para os fluxos desterritorializados — e todos eles o são, uns relativamente aos outros — é evidente que alguns dentre eles, por exemplo, os fluxos de quantidade abstrata, os fluxos de capitais, carecem de alguma coisa. Num momento, você tem um fluxo de dólares em alguma parte e falta de um território, de uma força de trabalho. O fluxo mais desterritorializado atrai para si a constituição de entidades produtoras, ele quer se reterritorializar em alguma parte. Finalmente, é sempre num sistema de diferenciais de fluxos que há constituição do vetor desejante.
Bellour : Eu compreendo, mas volto ao meu sentimento, que é como se não tivesse havido resposta. A gente está de tal modo em face do real absoluto que não se pode mesmo responder. A única coisa que se pode objetar eventualmente, é que tudo isso representa uma tal utopia relativamente ao que se acha, à torto ou sem razão na cabeça das pessoas, na minha por exemplo, que essa ideia de um tipo de capacidade de esposar os fluxos à medida que eles passam e sendo a gente mesmo uma série de fluxos, e que isso não possa ser ressentido no nível do sujeito — pois que, infelizmente, não se está ainda nesse nível…
Guattari : … E por um bom bocado de tempo…
{207} Bellour : … E por um bom bocado de tempo, que como a maior falta. Lendo o livro, tive mui fortemente o sentimento de me dizer: verdadeiramente, se é isso, o real, eu {moi} careço dele!
Deleuze: Sua observação não é justa, pois há muita gente que vive sob essa forma. Nem mesmo são escritores. Repreenderam-nos frequentemente por tomarmos exemplos de escritores, e é uma verdadeira sacanagem terem-nos repreendido. Um tipo como Lawrence, não é somente enquanto escritor que ele vive dessa maneira, é enquanto tipo amando o sol, enquanto tuberculoso, enquanto homem muito concreto, amando as mulheres etc. Ele vive sob essa forma de fluxo. Há muita gente, e cada vez mais, que vive sob essa forma e que o dizem muito realmente. Eles nem mesmo têm necessidade de dizê-lo, está escrito na testa deles: sujeito? eu {moi}? não conheço. Não creio que seja preciso dizer que se trata de utopia ou que o sujeito a tenha por muito tempo — ele a tem por muito tempo entre os jovens quadros, sim, mas ele não a tem por tanto tempo.
Guattari: Tomemos, por exemplo, Bloom. Os escritores são interessantes para isso, pois eles podem dizer o que os outros não estão preocupados em exprimir. Que diferença há entre a jornada de Bloom e a do cara que trabalha não importa onde? Não obstante, é uma incrível ilusão pensar que as pessoas têm uma identidade, que estão coladas a sua função profissional, pai,mãe, tudo isso… Eles são completamente errantes, desnorteados. Eles fluem. Eles fodem não se sabe o quê na cabeça, eles têm o ar fixo, tomado numa constelação, mas eles estão em adjacência relativamente a um montão de sistemas de intensidade que os percorrem. É preciso, verdadeiramente, ter uma visão intelectual completamente racionalista para acreditar que há tipos bem constituídos que se deslocam conservando sua identidade num campo. É piada tudo isso. Os tipos, são todos errantes, nômades. Trata-se de saber se essa errância gira em torno de uma estaca, como uma cabra, ou se é uma errância desejante, justamente capaz de se ajustar relativamente a pontos de fuga desejantes, desterritorializadores.
Bellour: Que no espaço ideal e real dos romances de Beckett haja essa deambulação e essa errância, que a reencontremos de um fragmento a outro de Michaux, que a jornada de Bloom em Dublin seja esse nomadismo, isso eu vejo bem, mas…
Guattari: Ele vai sacanear! Termine sua frase, você vai {208} sacanear, vá. Isso, isso, isso… Tudo isso é literatura?
Bellour: Sim, eu a direi, minha sacanagem.
Guattari: Mas o que funciona é justamente que não é literatura.
Deleuze: É sacanagem, porque isso se junta a uma crítica que nos fizeram, dizendo: ah ah, eles citam apenas obras literárias. Se as pessoas não compreendem que não é caso de literatura, que Lawrence, Artaud…
Guattari: Flaubert, A Educação sentimental, não é literatura.
Bellour: “A Educação sentimental”, se não é o mais espantoso romance construído sobre a falta, eu me deixo fuzilar! Esse rufião que, desde o início ao final do seu romance, carece de uma mulher, e depois essa mulher que, no final, sente uma tal falta daquele a quem ela falta, e que ela acaba por chamar seu banco, o banco Frédéric…
Guattari: Sim, mas nunca é isso, o que prova muito bem que ele de nada carece.
Bellour: Mas aí é jogar com as palavras.
Deleuze: Mais uma vez, não dizemos: não há falta. Dizemos: os fenômenos de falta não têm nada a ver com o desejo. Todo mundo, até agora, de Platão a Lacan,todos dizem: ah, é muito complicado, o desejo… é um problema de falta e de satisfação, compreendem… E então, de Platão a Lacan, reencontra-se a igreja.
Bellour: É certo que as coisas se passam como você disse, para um certo número de pessoas, é verdade…
Deleuze: Aí compreendido o capital, insisto muito sobre isso. O capital, isso flui, isso foge… Não falamos apenas em nome de revolucionários, não se permitiria. Mas em nome dos capitalistas, isso funciona fundo… Não se trata de pessoas, mas de fluxos, de fugas.
Bellour: Compreendo. Mas quando você vive com pessoas em torno de você, isso deve também acontecer com vocês, quanto a mim tenho terrivelmente a impressão de que as pessoas continuam a penar com um monte de problemas…
Guattari: Quem lhe disse o contrário? Mas eles não estão no campo do desejo.
Bellour: Eu gostaria de saber porque é precisamente isso que se chama desejo.
{209} Guattari: Mas, simplesmente, será que você já viu um tipo numa situação familiar, conjugal e outras, que esteja no campo do desejo? Tudo é precisamente organizado contra. Não dizemos que isso flui o tempo todo. Dizemos que quando isso não flui, você não está no campo do desejo, em todo caso. Quando isso quebra é que se passa alguma coisa e que o desejo se ramifica.
Deleuze: Por que, mais uma vez, as pessoas de que você fala aí, que não vivem sob essa forma, por que temos cada vez menos vontade de vê-las? Por que não podemos mais viver com elas? Por que se dão rupturas, quebraduras?
Bellour: Acho que isso resulta de um tipo de operação mágica de dizer: estamos fartos de viver com entidades determinadas, unificadas etc. Há outras coisas que são fluxos e ainda fluxos. Todos os fluxos são denominados desejos e tudo sobre o que se vivia antes, como o que enche o saco, não é o desejo.

Guattari: Concordemo-nos que chamar isso de falta ou chamar isso de fluxo é a mesma coisa, é a priori tão abstrato ou tão imbecil, como se queira. Mas, não obstante, há uma diferença. Quando você a denomina falta, você a localiza relativamente a todo o contexto, ao referencial fixado que a determina como falta. Ao passo que se você a define como fluxo, você não tem precisamente o contexto, não tem referente. Não são duas entidades, são duas políticas, duas filosofias. Ou você vai rumo à recentração, rumo ao referencial, do mesmo ao mesmo, ao idêntico, ao semelhante, ao análogo e toda essa bateria de cozinha. Ou você vai rumo a uma outra política. Nós dizemos: há duas políticas do desejo. Uma política fascista, paranóica, capitalista, burguesa, reterritorializadora, aquela que referencia, coordena, territorializa; e depois há uma outra que, desde que algo quebre, fuja, o investe. Já podemos partir daí.
Bellour: Absolutamente.
Guattari: A partir daí pode-se considerar que o que é fundamental, — energia desejante, o que se inscreve na história, no tempo, que remete a toda a fenomenologia do desejo real — não está do lado do desejo paranóico, mas do lado onde isso foge. E aí há uma passagem. Trata-se, num caso, do fato de se escorar, de se confinar na pessoa, no papel, na função e, no outro caso, de se meter na adjacência de um processo {210} maquínico, aí onde isso se passa, do lado da desterritorialização, o sítio onde isso flui no próprio seio do fluxo. Há, primeiramente, ajustagem fenomenológica de duas políticas e passagem de uma a outra.
Bellour : O que me toca a esse respeito é o aspecto decisório da coisa, que a palavra “política” traduz bem, aliás. Quer dizer: há duas políticas, duas opções.
Deleuze: Mas as opções são as do próprio inconsciente. Não são opções de decisão. É quando as pessoas estão fartas. Retornamos ainda à história do nosso livro. Nós de modo algum buscamos leitores. Os tipos que estão bem contentes com a psicanálise, de modo algum queremos desviá-los. Dizemos a eles: vai, vai, pequeno bezerro, vai ver seu analista. Isso é ótimo, isso lhe convém. Não podemos debochar das pessoas. Mas me parece que estamos em vaga comunicação com tipos, meninas, meninos que estão fartos. Então, se você diz: eu {moi}não estou farto de mim, do sujeito, tudo bem, dizemos a você: salve, Raymond…
Guattari : Do sujeito barrado, da falta de ser…
Deleuze: Há seguramente livros muito belos para cantar tudo isso. Não almejamos tomar o lugar de outros livros. O que almejamos é totalmente outra coisa. À força de falar, redizemos as mesmas coisas. Félix e eu buscamos aliados. É quase no nível dos pequenos anúncios underground. Suponhamos que cada vez mais pessoas estejam fartas. Não lhes propomos outra coisa, não ousaríamos isso. Temos a justa impressão de que pode haver uma espécie de eco com eles.
Bellour : Nesse sentido, Gilles, você tinha profundamente razão ao dizer: o segundo volume não será como o primeiro, porque no primeiro, fomos sobretudo levados a discutir conceito mais do que tomar partido e sistema existencial global.
Guattari : Certamente. É a culpa de Gilles isso.
Deleuze : Todas essas críticas são verdadeiras, e isso é minha culpa. Na repartição das culpas, sei as culpas de Félix quanto a esse livro, e seu bem as minhas. Todo o aspecto universitário do livro, é minha culpa. Que esse livro seja ainda universitário, é absolutamente triste. O que não impede que, sob sua aparência universitária, há alguma coisa que faz com que retornemos às questões precedentes: como você concebe ler um livro, qualquer que seja, universitário ou não? Há pessoas que lêem livros não universitários, {211} por exemplo Marx ou então Henry Miller, ou então Lawrence, como se fossem livros universitários. Eles fazem teses sobre isso. Mas há duas maneiras de ler um livro: ou se busca o significado do livro e, fazendo-se um esforço suplementar, busca-se o significante. Trata-se o livro como livro. Chega-se mesmo a explicar que o fim do mundo é o livro e que Mallarmé o disse bem.
Guattari: Edmond Jabès!
Deleuze: Félix e eu, em todo caso, e um certo número de pessoas, não somos os únicos, isso em nada nos importa. Há toda uma outra maneira de ler um livro, que é, uma vez mais ainda, tratá-lo em sua conexão com o não-livro. Isso quer dizer alguma coisa de muito preciso: alguém lê um livro e não se pergunta a cada página ou a cada frase: o que é que isso quer dizer? Ele lê um livro e, na minha opinião, é assim que se lê a poesia, espontaneamente, a saber: isso passa ou isso não passa. Se isso não passa, muito bem, você deixa o livro e vai ver seu psicanalista. Não há mal nisso. Não somos contra, de maneira alguma. Se isso passa, o tipo que lê não se pergunta o que isso quer dizer, o que é esse conceito, o que significa “fluxo”, “corpo sem órgãos”, apenas isso lhe diz alguma coisa. É por isso que empregamos o termo “máquina”. É do domínio da tomada de eletricidade. A máquina que não funciona, é preciso uma outra tomada ou uma outra máquina. Bem, nosso livro é isso.

Segundo encontro

Bellour : A partir do momento em que os problemas de falta são, senão resolvidos, pelo menos clarificados pela maneira com que foram postos na última vez, parece-me que se põe um problema entre o que se poderia chamar sexualidade no sentido amplo e a sexualidade em sentido estrito. A partir do momento em que a sexualidade é extensível ao campo social, coloca-se o problema do que se chama habitualmente sexualidade circunscrita ao sexo. Gostaria de compreender como o problema da sexualidade, no sentido tradicional do termo, poder ser articulado no interior da problemática de vocês. Porque, por exemplo, se a sexualidade especificamente sexual é um fluxo mais importante que as outras, isso não cria entre os próprios fluxos fenômenos de falta etc.
{212} Guattari : O termo sexualidade é mal feito. Não há fluxo assaz importante no nível da sexualidade, resultante da divisão dos sexos, pois, precisamente, já é um prelevantamento num certo sentido, uma mutilação do que se poderia chamar uma transsexualdade generalizada. Em toda parte em que se põe a questão da divisão dos sexos, isso quer dizer que já se assentou a energia desejante sobre pessoas, sobre pólos; num sentido, a própria palavra sexualidade já é uma entrada, uma avenida rumo à edipianização da energia desejante; aliás, é por isso que falamos sobretudo de energia desejante mais do que de pansexualismo ou de sexualidade generalizada. Não há uma sexualidade especificamente sexual, uma energia biológica sexual, resultado da divisão dos sexos, que seria uma zona particular da energia desejante, isso pela boa razão que as máquinas sexuais no sentido em que você as toma, são tão somente seqüências mutiladas, cortadas da energia desejante. A energia desejante não conhece sexos, não conhece pessoas, nem mesmo conhece objetos. Ela produz seus objetos e se vê assentar suas origens, se vê atribuir coordenadas sociais e sexuais, coordenadas exclusivas, limitativas e mutiladoras. Portanto, longe de ser uma fuga de energia biológica privilegiada que iria irrigar, por extensão, por sublimação, o campo social, é absolutamente o contrário : há uma energia sexual que é, digamos, transsexual, a-pessoal, que segue todos os fluxos, que se acha em seguida recodificada em termo de pessoas, de relações familiares, de eu {moi}.
Bellour : Quer dizer, por exemplo, que a sexualidade em estado hipertrofiado, tal como se pode ver em Miller, em Lawrence, nos autores que foram chamados pornográficos ou eróticos, é uma sexualidade que já lhes parece como um sistema de codificação ligado a todos os fenômenos de edipianização, de castração etc.
Guattari : Eles partem daí, de certa maneira, e todo seu processo analítico ou esquizoanalítico, toda sua experimentação consiste em poder se livrar e encontrar linhas de fuga, linhas de quebradura dessa codificação social.
Bellour : Sim, mas, apesar de tudo, em Miller, há não obstante uma especificação da energia desejante, sobre o sexo, que está aí, central, monumental. Falo de Miller porque vocês o evocaram frequentemente como exemplo essencial em O anti-Édipo.
{213} Deleuze : Creio que você acaba de colocar duas questões totalmente diferentes. A primeira questão concerne a sexualidade no sentido estrito e a sexualidade no sentido amplo. Creio que se emprega sexualidade no sentido em que todo mundo sempre empregou, no sentido de ter uma ereção, de ejacular ou não ejacular. De maneira alguma se distingue uma sexualidade estrita com pessoas, mulheres, homens, galinhas ou não importa o quê; e uma sexualidade ampliada que seria o equivalente de uma sublimação que inundaria o campo social. Diz-se: seja o que for que você amou sexualmente, o que você investiu através disso, que seja uma mulher, um homem, uma parte do vestuário, um calçado, uma galinha, não importa o quê, é um campo político social. Portanto, não estabelecemos de maneira alguma uma clivagem — isso é a clivagem freudiana — entre uma sexualidade estrita e uma sexualidade ampla que é uma sexualidade, seja neutralizada, seja sublimada, seja derivada etc.
Guattari : Uma sexualidade de objeto, uma sexualidade de referentes, se se pode dizer…
Deleuze : É nossa primeira diferença com a psicanálise. Não damos importância alguma à diferença sexual. Não damos a isso privilégio algum. Pode ser assim ou de outra forma, seja o que for que você espose sexualmente, de fato, através do objeto sexual, sexuado, seja qual for a maneira pela qual ele é sexuado — homossexuado, heterossexuado, bestissexuado — é um campo social, político. Portanto, para nós não há uma sexualidade estrita e uma sexualidade ampla. Há tão somente uma sexualidade que é a mesma em toda parte e que inunda tudo. Quando se diz, por exemplo que é sexual um burocrata acariciar seus documentos, não há a menor sublimação nisso. Essa sexualidade não se sublima no campo social; ela investe diretamente o campo social. Ela é social, política.
Bellour : Isso, de acordo.
Deleuze : A segunda questão que você coloca, quanto a Miller e Lawrence, quando você diz: “há uma espécie de concentração sobre uma sexualidade estrita”…
Bellour : Sim, mesmo que isso se panteíze, a sexualidade permanece concentrada no sexo.
Deleuze : Sim, mas isso volta a reintroduzir sua distinção estrito/amplo. Não se trata de dizer: “mesmo que isso se panteize, cosmologize”, porque é uma dimensão essencial. {214} Quando mais isso se contrai sobre o sexo, mais isso se amplia de fato no campo social e político. Da mesma maneira, em Burroughs, quanto mais isso se concentra na droga, mais isso dá um delírio social completo, com a polícia etc. Em Miller é também evidente. Quanto mais isso se retrai nas cenas de sexualidade pura, mais isso se abre ao…
Guattari : mais isso sai do familismo.
Bellour : Mas, independentemente do fato de que isso quebra o familismo, será que não se assiste a um tipo de exacerbação da sexualidade, da energia desejante sobre o sexo, sobre algo muito especificado?
Guattari : Pense, por exemplo, numa criança que acaba de se masturbar de maneira extremamente penosa, dolorosa e catastrófica, na qual ele não tem mais do que um pênis à vista. Pode-se concebê-lo, com efeito, como um tipo de retraimento da sexualidade no sentido de uma zona parcial que levanta a cabeça. Creio que, mesmo nesse caso, deve-se poder considerar que se trata de uma maneira de encontrar uma experimentação fora do campo social; a prova é que a masturbação, precisamente, é condenada enquanto manifestação de uma sexualidade fora da norma. Que a criança esteja fora de norma, indo bancar a idiota e vagabundeando na rua ou se masturbando, o que conta não é que ela está, num caso, na rua, em outros casos escondida sob lençóis, mas que ela rompe com a maneira pela qual a sociedade entende canalizar toda prática sexual no quadro do familismo ou no quadro de uma série de cadeias de integração.
Bellour : Sim, mas, não obstante, faço aí uma diferença. Quando você diz que um está na rua e que o outro se esconde, se há, me parece, um privilégio extraordinário concedido à sexualidade há um século, digamos, é precisamente por haver uma espécie de atividade perpetuamente secreta, ocultada, que se manifesta cada vez mais sob forma de transgressões e de provocações, como se a energia sexual fosse mais perigosa, mais transgressiva.
Guattari – Creio que não está ligada ao sexo. É sempre o mesmo erro de raciocínio. Se você começa por colocar o objeto e, a partir do objeto, deduzir a conduta, você falseia tudo. O desejo não tem objeto; não é um vetor que parte de uma totalidade pessoal para se fixar num objeto. O desejo recebe sua repressão personalógica e contra-determina seu {215} objeto. Digamos que ele fabrica, que ele produz seu objeto. Se você retoma esse exemplo da culpabilidade, é evidente que uma forma privilegiada da sexualidade capitalista é precisamente essa conexão com zonas privadas; não é porque você se masturba, ou que você tenha não se sabe qual preocupação concernente ao objeto parcial, que você recebe culpabilidade, é porque você tem uma prática de sexualidade culpável que você se serve de tal objeto ou de tal prática social. É totalmente o inverso, portanto. É porque o indivíduo, para se por em conjunção com fluxos desterritorializados, toma territorialidades cada vez mais parciais, culpáveis, dolorosas, masoquistas, que sua sexualidade se serve de um certo número de objetos, que ela destaca um certo número de seções do corpo, ou de práticas voyeurísticas, ou de coisas como isso. Parece-me que isso inverte completamente a perspectiva. A culpabilidade não é o resultado de uma prática sobre um objeto sexual que seria um sexo no sentido restrito; a culpabilidade é primeiramente uma prática da sexualidade privatizada, culpabilizada do capitalismo, que seleciona em seguida seus objetos no campo social.
Bellour : Mas então o que chamamos ordinariamente de sexualidade, seja ela heterossexual ou homossexual, é o que, num plano utópico, não se poderia conceber como alguma coisa de equivalente à gastronomia, por exemplo, no sentido em que esta, de um lado, se efetua num registro extremamente variado de pratos e, por outro lado, escapa completamente ao segredo?
Guattari : Isso é um juízo de valor.
Bellour: De maneira alguma. Não quero desvalorizar nem uma nem outra. É que a gastronomia supõe a escolha absolutamente livre do que se vai consumir e, de outra parte, efetua-se numa suspensão total do segredo.
Deleuze: Que haja segredo ou não, isso nada muda. Nada impede que a libido seja ramificação num campo social aberto e de modo algum num campo familiar fechado.
Bellour : A partir do momento em que se fala de segredo, já ha tendência a uma restrição sobre a pessoa…
Deleuze : Não, porque o segredo é uma forma social particular. Por outro lado, todo mundo sabe que o segredo é uma forma social muito codificada, que implica, ela própria, todo seu campo social. Isso não quer dizer redução da sexualidade ao privado, isso quer dizer coisa totalmente distinta. Isso quer dizer que as formas sob as quais a sexualidade investe o campo social passam pelo {216} segredo, mas que o segredo, longe de ser um recuo para fora do campo social, é uma certa estruturação do próprio campo social. Volto à questão para findar com o primeiro ponto, porque me tocou o que você disse sobre Miller ou Lawrence. Parece-me que, por mais que eles assentem e invistam formas sexuais não sublimadas, brutas, há, ao mesmo tempo, uma abertura maior ao mundo político, social, seja ela boa ou má, sob forma fascista ou sob forma mística, ou sob forma política real. Quero dizer que não são duas coisas na obra de Miller, o Trópico de capricórnio com suas cenas sexuais, e o Colosso de Maroussi com a Grécia, o delírio sobre a Grécia. É a mesma coisa, quer dizer ele fode a Grécia através das cenas do Capricórnio. Para Lawrence, Lady Chatterley e os Etruscos são verdadeiramente o anverso e o reverso. É à força de sexualidade não sublimada que ele se abre a um mundo histórico, social e político.
Guattari : Posso tomar um exemplo, o de Kafka: na passagem a uma sexualidade animal ou a uma sexualidade quase esquizo, longe disso ter acabado num encolhimento da sexualidade, foi através disso que ele conduziu sua análise da evolução das formas do burocratismo no período austro-húngaro e do burocratismo capitalista e modernista que começa a aparecer nos setores aos quais ele está confrontado, os seguros e o trabalho de Felice Bauer etc.
Deleuze : Para nós é muito importante que não haja uma sexualidade no sentido estrito e uma sexualidade no sentido amplo. Isso porque, se você cola uma sexualidade no sentido amplo, de uma maneira ou outra reencontrar-se-á a sublimação.
Guattari : Absolutamente. Em A Carta ao pai, Kafka diz do seu pai: quando você estava em sua boutique, em suas relações de comércio, você estava admirável. E, ao mesmo tempo, Kafka o detestava. Mas o que ele visava aí não é uma conexão de ciúmes, de posse ou de relação miraculosa entre a mãe e o pai, é um certo campo social de tirania estabelecido pelo pai.
Bellour : Minha preocupação relativamente a esse problema vem de duas coisas: primeiro, na medida em que se assiste a um tipo de privilégio, se se pode dizer, da sexualidade no sentido estrito, como vocês podem negociar esse privilégio no interior do conjunto de sua problemática; e, em segundo lugar, como isso se articula ou não com o problema do segredo, no sentido em que, na {217} conversa com Foucault, ele dizia: “o segredo é talvez mais difícil de revelar do que o inconsciente a.
Guattari : A questão toda está em que a promoção da imagem, objetos parciais, seio, falo, ou tudo o que você queira, é uma certa maneira que o capitalismo, literalmente, tem de despotenciar todos os objetos sexuais, de cortá-los de suas conexões reais. Põem-se em circulação uma sexualidade biológica ou uma promoção quase médica de finalidades sexuais, e quanto mais se está seguro disso, mais os fluxos de desejo são canalizados para esses objetos. Dão-se tanto mais sexos, seios etc que, como isso, está-se seguro de que não se falará de dinheiro. Não se falará de conexões de forças micro-políticas e outras que são constitutivas da essência do desejo.
Deleuze : Insisto sobre isso: é que o segredo de modo algum está fora do campo social, é uma categoria constitutiva do campo social. Por exemplo, as sociedades secretas. Elas não se põem fora da sociedade, são partes constituintes dela, estruturadas na própria sociedade. Uma sociedade secreta é uma certa maneira de investir o campo social de um modo particular, até mesmo sociedades de anarquistas. Mesmo sob outras formas, o próprio segredo nunca é um descarte da sociedade, é um elemento estrutural, no pior e no melhor sentido da palavra, de toda sociedade, de modo que a ideia de uma sexualidade assentada sobre um certo segredo, isto faz completamente parte da maneira pela qual a sexualidade investe um campo social.
Bellour : Mas então você não pensa que a maneira de desatar o privilégio sexual — que corre sempre o risco do assentamento numa sexualidade estrita e, em último lugar, na escolha de objeto, o familismo etc — seja justamente a ruptura desse segredo que constitui o sexual como lugar privilegiado de um gozo superior, oculto, etc?
Deleuze: Não, porque se sabe muito bem que uma sexualidade pública, que uma sexualidade comunitária pode produzir familismo tanto quanto a sexualidade privada. Conhece-se bastante as comunidades públicas ou apelos pseudo-reichianos à sexualidades liberadas que reproduzem Édipo à n potência.
{218} Guattari : Gostaria de acrescentar a isso que todo um naturalismo, toda uma boa consciência da sexualidade, através da psicologia, da medicina, da pedagogia, da educação sexual, consiste em esmagar o desejo, em cortar um certo número de objetos da diferença sexual, precisamente para cortá-los do desejo. Quanto a mim, não gosto muito do termo segredo, diferentemente de Gilles, que gosta muito dele. Mas, enfim, creio que podemos nos juntar, dizendo: o que há de secreto no desejo é que ele é absolutamente imprevisível. Não se conhece de antemão seus objetos. De modo algum se sabe sobre o quê seu processo vai desembocar. É totalmente o contrário da representação da sexualidade-satisfação da qual se conhece o objeto, da qual se conhece a queda de tensão, da qual se conhece todo o protocolo, inteiramente codificado. Não sei se é preciso chamar isso de segredo, mas a abertura do desejo no campo social, é um certo caráter de liberdade política, um certo caráter de inovação, de produção particular de objetos; e é precisamente aquilo de que o campo social não quer ouvir falar. Não se quer que tudo isso seja previsto: em tal estágio da infância, você tem tal tipo de objeto, em tal outro estágio, tal outro objeto… Se lhe falta tal tipo de objeto, é que alguma coisa não vai bem. Você tem tal zona erógena, que é normalmente desenvolvida em tal época, e não normalmente em tal outra etc. Tudo é completamente programado.
Bellour : É o que faz, então, com que uma sexualidade com suspensão do segredo seja tão perigosa quanto uma sexualidade ligada ao segredo.
Guattari : É um arranjo.
Deleuze: A diferença não está aí. Ela não está no nível privado/público, nem no nível múltiplo/uno. A diferença está na questão: será que é uma história de fluxo ou uma história de pessoas e objetos? Quando se crê amar uma mulher, o que se ama de fato através dela é outra coisa, isso é bem conhecido. Isso não quer dizer que se ama outra pessoa, que seria a mãe etc. É uma vergonha dizer semelhantes coisas, é feio. Mas, através de alguém, o que se ama é de ordem não pessoal, é da ordem de fluxos que passam ou não passam.
Guattari : Há ainda um outro modo de abordar a questão. Pode-se dizer que a produção de desejo procede segundo uma semântica a-significante. O desejo se serve de fluxos, de substâncias. Ele não se serve de maneira privilegiada de conexões formais, de {219} conexões discretizadas, bi-univocizadas, digamos de todas as semióticas significantes. O que faz com que, a cada vez que se queira fazer passar o desejo fora das substâncias intensivas no quadro de conexões formais, localizadas, coordenadas, personologizadas, dependentes do princípio de contradição etc, recai-se então nas dicotomias da sexualidade parcial.
Deleuze : Eis aí, tenho a imagem que convém. Há um conjunto de palavras, por exemplo: delirar. Delirar, isso quer dizer sair do sulco. Há também em Sade, e em toda literatura pornográfica, a palavra “desenrabar”. Desenrabar, isso quer dizer sair de alguém que se está enrabando. Desbocetar é sair de alguém em que se está. Delirar é o camponês que falha ao traçar o sulco com seu arado. Pois bem, toda sexualidade é isso. A diferença não é: segredo/não segredo, é o fato que delírio/desbocetagem/ desenrabagem sejam o estado fundamental da sexualidade. Dirige-se a uma pessoa, visa-se uma pessoa, um objeto ou não importa o quê e, através dela, isso derrapa, e isso derrapa forçosamente na felicidade ou na infelicidade. Há amor ou desejo por tal pessoa, mas através dessa pessoa, a pessoa é complemento desfeito. Félix citava Kafka. Sem dúvida, no seu caso, era preciso Felice para que, literalmente, isso desbocete, isso delire sobre tal formação social. É por isso que a psicanálise nos parece tão frágil a esse respeito. Não é a formação social que assegura uma sublimação qualquer, é a formação social que assegura as linhas de desterritorialização, de desbocetagem, de delírio etc.
Bellour : Então, último ponto sobre isso, como vocês se situam relativamente ao que se poderia chamar problema biológico da sexualidade, quero dizer relativamente à dimensão frequentemente privilegiada chamada “instinto sexual” e que se articula, em última instância, a uma biologia?
Guattari : Retomo os termos de Gilles. O que faz desbocetar, desenrabar, delirar? É o fato que, de uma substância a outra, passa-se de um certo coeficiente de desterritorialização a um outro, quaisquer que sejam as estruturas formais que se encontre. Há um fluxo qualquer, fluxo de signos, por exemplo, que tem necessidade de entrar e conjunção com um certo fluxo de carícias, de espermas, de merda, de leite… Fora dessa conexão, cada um dos fluxos é remetido a sua estrutura formal própria. A partir dessas conjunções de fluxos intensivos, um acontecimento se produz. Uma outra máquina desejante aparece {220} fora das correlações formais. Creio que é isso, o caráter biológico particular no sentido estrito de que você falava. A desterritorialização só pode entrar em ação quando ela entra nessa conjunção particular que faz saltar as soldas da máquina humana. É quando você pode fazer saltar suas soldas num plano de gozo sexual, é quando você pode entrar em conexão com tal ou qual sistema que alguma coisa opera.

Bellour : Num outro plano, vocês opuseram várias vezes os fenômenos de produção e de anti-produção, em particular a propósito de tudo o que toca o sonho, a fantasia, digamos as imagens; e fiquei impressionado pela maneira como distinguiram dois tipos de sonhos, os bons e os maus. Por que o sonho parece menos da produção do que o sono ou pesadelo, como vocês disseram uma vez? Será que vocês poderiam precisar qual estatuto atribuem — pois só parcialmente rejeitam a palavra fantasia — ao que se pode denominar como diferentes representações da vida psicológica: imagem, memória, fantasia etc. Como determinar o que é produção e anti-produção?
Guattari : É uma questão difícil. Parece-me que o interesse do sonho, da fantasia, do fantasma ou de tudo o que você queira, está em serem uma máquina para detectar porcarias edipianas. É uma máquina para detectar os sítios onde se contraem as reterritorializações, isso em virtude da própria natureza do sonho, no sentido de que é uma atividade que, por definição, tende a ser cortada de toda conexão com o real, com o campo social. No mesmo lance é como se fosse uma radiografia de todos os pontos de bloqueio. Ora, é extremamente interessante repetir esses pontos de bloqueio. Penso que o sonho, para retomar a fórmula de Freud, é a via real, não do inconsciente, mas da edipianização do inconsciente. Continuo a pensar que a análise do sonho é muito importante porque, quando você pode chegar a determinar, no sonho, por qual enganação, por qual espécie de desterritorialização, por qual tipo de identificação você vai colmatar e levar sua política fascista, devir policial consigo mesmo, isso devém um modo de ajustagem de uma outra política possível. Penso que esse tipo de ajustagem é extremamente importante. Ali onde, no sonho, se produzem esses impactos fascistas, há, {221}, precisamente no mesmo sítio, o umbigo do sonho, quer dizer, o indício maquínico de uma outra política possível. No próprio sítio em que se é o mais fascista, o mais bloqueado, é que alguma coisa pode abrir-se numa outra cadeia, pois se é tanto mais fascista no sítio atrás do qual há uma ameaça maquínica. Tudo depende do que se quer fazer do sonho. Se você quer interpretá-lo, reificá-lo, coisificá-lo na grade de interpretações, então, no mesmo lance, ele serve para reforçar uma política fascista. Inversamente, se você, mais do que interpretar, quer colocá-lo num sistema de produção, um sistema de quebradura de esquemas habituais, de esquemas reais, se você quer efetuar uma técnica de experimentação, então, mais do que alimentar uma semiótica edipianizante, você pode servir-se da semiótica particular do sonho para reforçar uma semiótica a-significante.
Bellour : Isso se junta ao texto sobre as máquinas, que vocês publicaram pela Minuit b. Vocês opõem a dissociação à associação, uma sendo de alguma maneira o sistema de eliminação que permite chegar ao outro. Mas então, nesse momento, parece-me que se coloca um problema: como se pode estabelecer uma repartição? Como uma avaliação do “sem liame” não constitui, ela própria, um tipo de retorno à interpretação? Na medida em que se opõe intensidades a estruturas, será que se pode chegar a detectar que elas são intensidades porque já não se prestam a alguma avaliação de codificação, e se elas se prestarem a isso, será que seriam de novo redutíveis em termos de estrutura? Como se põe o problema dessa repartição? Não é ainda uma operação de saber que corre novamente o risco de ser reificada?…
Deleuze : Não, é uma operação de crítica, não de saber. A crítica e o saber me parecem muito diferentes, tanto historicamente quanto politicamente. O que se tenta opor é um domínio de experimentação a um domínio de interpretação, que é o domínio da psicanálise em geral. De um lado, há uma máquina paranóica, como máquina de interpretação, que funciona em toda sorte de níveis, no nível social, no nível familiar ou conjugal…
Guattari : … no nível somático, hipocondríaco.
{222} Deleuze : Você fez tal coisa, isso quer dizer isto… Que a psicanálise não a tenha inventado, mas que ela se aproveitou disso, que ela tenha dado uma nova figura à máquina de interpretação, é evidente. E a máquina de interpretação, isso quer dizer várias coisas. O primeiro aspecto da máquina de interpretação é o significante: isso quer dizer alguma coisa. O segundo aspecto é a anamnese: o que você é, você o tem sido. Você é o que você é em função do que você era {enquanto} criança etc. O terceiro aspecto é a representação. É a conexão de força. Todos esses níveis são a conexão forças. A máquina de interpretação e a conexão de forças fazem um. É por isso que a psicanálise vive desses três aspectos. Ela dá uma figura original a três aspectos bem conhecidos que são as velhas figuras do par. Nem mesmo é preciso dizer, como dissemos em O anti-Édipo, que o lugar da psicanálise é a família. Deveríamos dizer que seu lugar é a conjugalidade. Nós, o que dissemos, é verdadeiramente o contrário desses três aspectos. Uma esquizoanálise, isso consistiria, entre outras coisas, em desfazer toda máquina de interpretação: entende-se que o que você diz, isso a nada remete, isso nada significa.
Guattari : Não é nem recursivo nem prospectivo.
Deleuze : É um dado bruto. Qual é a posição do desejo na situação atual?
Guattari : Qual política você leva? Onde você quer chegar? Quais são suas coordenadas?
Deleuze : Sim, é: experimentação = política. E não: experimentação = escola infantil. Na psicanálise isso quer dizer: escola maternal. O segundo ponto é: referência alguma ao passado, de modo algum para suprimí-lo, mas porque a constituição do passado e do presente do qual esse passado é o passado são estritamente contemporâneos. Sinto-me de novo muito bergsoniano, é perfeito. A lembrança de infância é contemporânea da própria infância. Simplesmente, há uma distorção radical entre as duas. É ao mesmo tempo que a criança fabrica suas lembranças de infância edipianas e o que Félix chama de “blocos de infância” de uma natureza totalmente distinta, porque nada tem a ver com Édipo, com a família. Nos romances de Tony Duvert há blocos de infância, no sentido em que se vê uma sexualidade infantil que nada tem de edipiano, e {223} é ao mesmo tempo que as lembranças edipianas de infância se fazem. Então, a recusa da anamnese de modo algum consiste em dizer: referência alguma ao passado. É a armadilha na qual caíram aqueles que romperam com Freud. Disseram grosso modo: “consideramos os fatores atuais, isto é, não infantis. Para tudo que é infância, Freud tem razão. Mas há problemas do jovem ou do adulto”. De modo algum nós dizemos isso. Dizemos: mesmo no nível da infância, não é como Freud o diz. O que queremos dizer é que as lembranças de infância se fazem ao mesmo tempo que a infância; o tempo em que se é criança é o mesmo no qual já se trai sua infância. Fabricamos nossas edipianas lembranças de infância: ah, meu papai, minha mamãe. De modo algum distinguimos entre fatores infantis/fatores atuais, como aqueles que romperam com Freud, como fizeram Jung ou Adler. Dizemos: mesmo no nível da infância você já encontra a mistificação, isto é, a clivagem entre estruturas edipianas e puros blocos de infância. A partir daí, foda-se a anamnese, mas de modo algum à maneira pela qual foi feito até então. Até então, isso consistia em dizer: os fatores atuais são mais importantes que os fatores infantis. Nós dizemos: nos fatores infantis há fatores atuais, eternamente atuais, e fatores virtuais. Os fatores virtuais, é a fabricação do Édipo, que são o objeto, o produto da repressão. Mas a verdadeira via da infância nada tem a ver com isso; ela é completamente atual, uma vez dito que não se sai da infância, obviamente. Mas a infância já é política. Um rapaz pensa em bombas, ele pensa em enrabar sua irmã etc, não é coisa da família, é coisa da sexualidade e do campo social. Logo, não há operação alguma de anamnese a ser feita. Há tanto menos anamnese que o tema da experimentação é: por natureza, você não sabe o que você é. O psicanalista é alguém que diz: alguém, seja eu, o bom Deus, Freud ou a memória de Freud, sabe o que você é. Ele o sabe, porque o que você é, é que você foi criança. Nós dizemos: a criança não sabe o que ela era, e tampouco o sabemos agora. O que se é, só se pode saber ao final de experimentações, como alguma coisa de futuro. Então, a experimentação voltada para o passado de uma pseudo-infância, e a experimentação voltada, ao contrário, rumo à exploração {224} de uma futura infância, opõem-se absolutamente. É por isso que gostamos tanto dos sadomasoquistas americanos que não lêem Freud. Opõe-se a memória e o esquecimento. As coisas se fazem pelo esquecimento, e não pela memória. A psicanálise procede pela memória. Nós procedemos pelo esquecimento, e não pelo despertar através do esquecido. Dizemos: quanto mais você esquece, melhor é, porque quanto mais você esquece, mais você vive. Quanto menos você sabe o que você é, melhor é. Então, na América do Norte, os sadomasoquistas dizem: você crê que você é sádico? Você crê que você é masoquista? Você crê nisso, você crê naquilo? Nada disso, você vai fazer suas experiências. Isso nos parece a boa esquizoanálise. É regozijante, com efeito, ver pederastas que dizem: sou pederasta. Toda fórmula “sou” é impossível. Talvez não sejam de modo algum pederastas, o pior pederasta que diga “eu sou, veja como eu sou” talvez seja outra coisa. E é esse o objeto de uma esquizoanálise, saber o que ele é.
Enfim, terceiro e último ponto, o da representação, razão pela qual nos opomos completamente à psicanálise, é que a psicanálise sempre consistiu em negociar, no sentido próprio da palavra, isto é, em mercadejar em troca de dinheiro, estados vividos em troca de outra coisa. Então, reencontramos aí a questão do fantasma. Nunca o fantasma foi um estado vivido, os psicanalistas bem sabem disso. O fantasma é um estado completamente fabricado, completamente traficado: é uma moeda. O psicanalista é alguém diz grosso modo: o contrato que eu lhe proponho é traduzir seus estados vividos em fantasmas, e você vai me dar dinheiro.
Bellour : Troca do sentido e do dinheiro.
Deleuze : Em troca do dinheiro. Você me dá dinheiro e eu traduzo em fantasma o que você era. Não, dizemos: o vivido é por natureza o intensivo, é coisa de intensidades que passam; e essas intensidades não são o representativo.
Bellour : Ainda assim isso produz imagens.
Deleuze : Não.
Bellour : É isso que eu gostaria de compreender, porque…
Deleuze: Assim que isso produz imagens, há greve de fantasmas, isso produz imagens quando isso se bloqueia. É um pouco como a leitura.
Bellour : Aí, viso algo de puramente elementar. Quando você está em seu leito, não importa onde, num estado de beatitude {225} relativa, e que ele lhe passa coisas, uma imagem de não importa o quê, de faca, de mulher, de…
Guattari : Quando ele lhe passa coisas, é porque você está tomado num sistema de coordenadas, é porque você tem uma posição de sujeito que se representa alguma coisa e que se situa relativamente a uma intensidade. Há, portanto, mais do que uma triangulação, há toda uma organização da representação com a imagem.
Bellour : Sim.
Guattari : Portanto, você tem a imagem e o sujeito de um lado, a intensidade do outro, mais os outros que vêm fazer a moral, quem vêm aplaudir ou vaiar. Portanto, do ponto de vista do desejo, assim que há imagem, pode-se dizer que há já cessação, curto-circuito do desejo, pois há corte subjetivo que instaurou, de um lado, a representação de imagem e, de outro, a intensidade que foi parcelada, cortada num campo de representação e num campo de produção, um campo de trabalho útil e um campo de trabalho nocivo.
Deleuze : É como quando você lê um livro. Há também aí uma conexão erótica com o que se lê, uma conexão amorosa. Quando é que você tem imagens? Não é quando você lê. Você não tem imagem quando lê.
Bellour : Você tem imagem quando pára de ler.
Deleuze : Sim, quando você as tem o bastante, quando você repousa, quando você quer refletir. Aí então as imagens vêm, é a greve do fantasma.
Bellour : Você quer dizer que o fantasma é a greve da intensidade?
Deleuze : Nesse momento as intensidades param, elas são bloqueadas.
Guattari : É a contemplação, o recolhimento, um assentamento sobre a territorialidade de imagem.
Deleuze : Quando as intensidades passam, não há imagem alguma.
Guattari : É bem simples, quando você está em vias de beijar, quando você está em vias de gozar…
Deleuze: Não há imagem.
Guattari: Se imagem alguma passa pelo canto, acabou, isso desvenda também secamente, isso não funciona de modo algum.
Deleuze : É mesmo a definição de desvendar. Você tem uma imagem, está perdido.
Guattari : Terminou.
{226} Deleuze : Ou então, você se ramifica penosamente a partir da imagem. Você diz: ah, eu preferiria que fosse com outra, mas é isso não vai bem.
Guattari : Ou então é o próprio fluxo de imagens que funciona.
Bellour : Sim, mas é isso que me interessa. Vejo bem como, em certos estados, há sistemas de bloqueio; mas me parece extremamente curioso fazer com que toda vida “imaginária”, pois ela tem produção de imagens, seja inteiramente submetida…
Deleuze : Ela é edipiana.
Bellour : … que ela seja edipiana não possa ramificar sobre os fenômenos de fluxo, ser ela própria integrada a fenômenos de fluxo.
Guattari : Sejamos claros. A imagem, de qualquer modo, estamos dentro até o pescoço. Não vamos dizer que não é preciso imagem, seríamos completamente idiotas. Estamos impregnados dela em toda parte. A questão é saber o que se faz com as imagens. Será que se faz uma política de fluxo que tende a fazer com que as imagens devenham “figural”, para retomar o termo de Lyotard, ou será que se faz uma política da imagem, a saber que, quando se tem uma…
Bellour : … guardamo-la.
Guattari : Guardamo-la. Coordenamo-la, trabalhamo-la, referimo-la a ressonâncias. Quando você vê a televisão, trata-se de saber se você interpreta, se você refere isso à lei, ao pai, a Deus etc.
Bellour : Parece-me curioso pensar que a imagem que a imagem seja completamente oponível à intensidade. Que a imagem, como fenômeno de travessia mental, não possa ser, ela própria, um fenômeno de intensidade, confesso que não compreendo.
Deleuze : Forçosamente, sim. A imagem é, por definição, uma parada nas intensidades. A imagem é coisa da extensão. É quando as intensidades, de uma só vez, transbordam em extensão, se põem em extensão para formar uma cena. É o que se chama um fantasma.
Guattari : Sujeito-figura-fundo.
Deleuze : De modo algum queremos dizer que isso não é levado por intensidades; queremos dizer que quando a imagem se desdobra em extensão, isso é o signo de que as intensidades se repousam ou estão bloqueadas.
{227} Bellour : Mas nos fenômenos de droga, por exemplo?
Guattari : São fluxos.
Bellour : Ah não, nos fenômenos de droga, sabe-se bem que você tem uma aceleração de imagens, uma multiplicação de imagens.
Guattari : Sim, são fluxos de imagens…
Deleuze : É a retomada das intensidades.
Guattari : As intensidades drenam imagens.
Deleuze : Mas, como Félix disse há pouco a respeito do sonho, há um sistema de imagens e, através dele, passa outra coisa. O que é preciso encontrar é o que se passa distintamente. A psicanálise, longe de encontrar o que se passa sob o sonho, fecha-se no sonho, num sistema de imagens e de significantes. Mais uma vez, para nós, imagem, significante, imaginação simbólica, dá tudo na mesma. No sonho há tudo isso, depois há uma corrente totalmente distinta, que não é dita no sonho. É ainda mais claro nas drogas, e isso depende do gênero de droga. Há drogas mas imaginativas que outras. De toda maneira, haverá sempre um complexo imagem-intensidade. O que nos parece chave são as intensidades não-representativas, porque as intensidades são desterritorializadoras, elas desenraizam territórios. Não se sabe mais onde se está.
Bellour : E toda imagem é forçosamente territorializadora?
Guattari : Forçosamente, uma imagem é um território. É uma operação de subjetivação, de interpretação e de territorialização enquanto tais.
Deleuze : É como quando Lewinter, na Revue de psychanalyse, explica a conexão do sonho e da tela c … Esse artigo é muito importante para nós. Isso mostra a que ponto o fantasma é uma projeção numa cena. Você tem estados vividos, que são estados de alta ou de baixa intensidade. Você traduz isso em Melanie Klein, isso dá uma fantasmagoria.
Guattari: É a diferença entre Charlie Chaplin e Buster Keaton, se você quiser.
Bellour : Compreendo bem, mas o que não está claro é quando você, Félix, emprega o termo fluxo de imagens, o que, segundo o que Gilles acaba de dizer, é aparentemente impossível, {228} pois fluxo e imagens são oponíveis, já que a imagem depende do fantasma e, portanto, do bloqueio.
Deleuze : Não há oposição alguma entre nós, creio. Porque, quando Félix fala de fluxo de imagens, é porque as imagens se precipitam a tal ponto que elas encontram as intensidades puras. As imagens do cinema, por exemplo. Não estamos em vias de dizer que o cinema seja merda por comportar imagem, ao contrário. O cinema é formidável porque pode trazer um tal fluxo de imagens, por exemplo em Godard, que reconstitui as intensidades em estado puro. Isso desbloqueia as imagens a tal ponto que se pode mesmo desbloqueá-las por um plano fixo. Não é a velocidade, nem a aceleração das imagens que faz isso, mas uma conexão de complementaridade. De modo algum há dualismo. Há uma tal conexão imagem/intensidade que, ao mesmo tempo, a imagem é a extensão que ganha uma intensidade quando morre; mas um precipitação de imagens ou bem uma imagem fixa onde se passam coisas por toda extensão; ou então uma cor atravessa a imagem e restitui completamente a intensidade através da imagem. É por isso que Félix diz que o sonho é muito importante. É preciso analisar o sonho, porque o sonho é precisamente a merda, mas, ao mesmo, é o que é atravessado pelas intensidades. O importante é atingir o que não é representativo. Então, os lacanianos acreditaram que bastaria encontrar o significante para ultrapassar o representativo. Quanto a nós, apenas dizemos: não, é ainda coisa da pura representação. O que nos interessa é descobrir as intensidades.
Guattari: Creio que é nossa história de semiótica a-significante que pode dar conta do problema das imagens, porque, no final das contas, as imagens são tomadas como suportes. Finalmente, há fugas de imagens, mas de modo algum essenciais à conexão intrínseca entre as intensidades e os signos desterritorializados que devêm agenciamentos coletivos.
Bellour : Mas tomemos, por exemplo, os textos escritos por Charlotte Brontë há setenta e sete anos, que dão testemunho de uma falta sexual evidente, que se cristalizam em truques puramente fantasmáticos de representação maciça, de satisfação derivada. E ao mesmo tempo há aí imagens escorregadias que não param de passar. As duas atividades nascem de um mesmo estado de concentração, que são tipos de estados estáticos que ela {229} cria de modo sistemático. Sozinha no escuro ela cria imagem. Às vezes isso derrapa completamente, e às vezes isso se bloqueia. Parece-me que os dois fenômenos são, ambos, muito importantes, articulados, e de modo algum exclusivos um do outro. E, portanto, não se pode dizer, no sentido um pouco brutal dito por Gilles há pouco: a imagem é merda.
Deleuze : Sim, mas aí está um pouco nossa diferença, entre Félix e mim. Felix diz: seja edipiano até o fim. Quanto mais você for, melhor será. Sonhe, sonhe, sonhe, uma vez dito que o sonho é fundamentalmente edipiano. Isso me parece muito importante. Se você não sonha, não encontraremos suas linhas de intensidade pura, não edipianas. Então, evidentemente, eu teria tendência, sendo não prático, de ser mais violento, e dizer: descubra, sob suas imundícies edipianas, alguma coisa de mais puro. Mas Félix tem, evidentemente, razão de dizer…
Guattari : Sim, creio que o Édipo tem isso de característico, que é sempre uma justa medida. É a diferença entre a técnica psicanalítica de gabinete e, por exemplo, as tentativas de Laing em Kingsley Hall. Aí a justa medida é completamente perdida, porque eles fazem um Édipo na escala de toda uma comunidade; ser edipiano, isso quer dizer permanecer na justa medida da normalização triangular com papai-mamãe ou com o analista como numa conexão muda. Se você nunca se mete a ser edipiano até a abolição, até o narcisismo, até a pulsão de morte, nesse momento aí alguma coisa muda. A característica de todo movimento romântico é que eles partem de uma posição triangulada dos objetos parciais e, em dado momento, eles tomam a tangente: eles são de tal modo edipianos — Werther é de tal modo edipiano — que eles acabam por não sê-lo de maneira alguma. A questão toda está em ir até Werther. Você vê o que eu quero dizer?
Deleuze : Meu ponto de vista é também correto. Os dois são verdadeiros, parece-me.
Bellour : Eu vejo bem, mas é um pouco fácil.
Deleuze : Quando se diz: dado um sonho, você pode, por abstração, — de maneira alguma por separação real –, separar as direções representativas e as direções intensivas, isso quer dizer que um sonho nunca é uma coisa pura, mas que há uma direção edipiana e uma direção intensiva, não figurativa, e que é preciso encontrar o intensivo sob os fenômenos extensivos do sonho.
{230} Bellour : Sim, o que me parece importante é que há, no Anti-Édipo, dois movimentos relativamente a esse problema do não figurativo. Vocês dizem que o inconsciente é não-figurativo e, por outro lado, no final do livro, vocês vêem muito bem que a arte — a arte classificada historicamente como não-figurativa — pode também ser
a mais bela armadilha à cons.
Deleuze : Ah sim!
Bellour : Relativamente ao figural — e aí a noção de Lyotard me parece importante — no sentido em que o figural ultrapassaria a oposição figurativo/não-figurativo e talvez imagem/fantasma.
Deleuze : Salvo que figural é uma palavra ruim, não para Lyotard, mas para você.
Bellour : Não é que eu goste dela especificamente, mas ela indica uma direção de ultrapassamento.
Deleuze : A direção de ultrapassamento não é abstrato no sentido de arte abstrata, porque a arte abstrata me parece completamente representativa.
Bellour : Se há uma que me parece pega na armadilha da estrutura é bem ela.
Deleuze : A verdadeira diferença passa entre o intensivo e todo domínio de extensão, seja a extensão abstrata do espaço abstrato ou do espaço representativo.
Bellour : Sobre o intensivo, há uma coisa que me dá trabalho (e isso, aliás, desde Diferença e repetição, onde você já falava disso). Se há uma ciência da extensão, a da psicologia clássica, da psicanálise, o próprio termo de “ciência da intensidade” é pensável? A estrutura pode ser assinalada, medida, quantificada, articulada. Será que a intensidade pode ser determinada simplesmente por oposição ao fato de que ela não é a estrutura e que ela não se reduz a isso? Ou é alguma outra coisa que pode quantificá-la, pensá-la?
Deleuze: O problema é de tal modo complexo que não me sinto pronto para responder. Mas vejo várias direções. Sempre houve ensaios de ciência de intensidade; seria preciso ver historicamente. Isso me parece apaixonante, porque é uma tentativa perpetuamente sufocada, que ressurge todo tempo. Houve um ensaio muito importante de ciência real de intensidade na escolástica. As quantidades intensivas desempenharam um papel muito importante no nível da física e da metafísica. Em Duns Escoto há um ensaio de ciência das quantidades intensivas no nível dos modos e no {231} nível de Deus. Eu pulo etapas. Houve um ensaio de ciência das quantidades intensivas na energética do século 19, em pura física, distinguindo a natureza das quantidades intensivas e das quantidades extensivas. O último avatar do sucesso das ciências das quantidades extensivas são as ciências humanas. Por que encalhou uma ciência das quantidades intensivas? Uma ciência das quantidades intensivas implicaria uma conexão totalmente distinta entre sua própria história e a epistemologia. A epistemologia não é conciliável com tal ciência. Ela é inteiramente feita em função das quantidades extensivas. Tudo o que foi tentado no sentido das quantidades intensivas permanece marginal, seja a acupuntura, as tentativas de física intensiva, de lingüística intensiva (do lado da escola de Hjelmslev), o papel das intensidades em música do lado de John Cage. Então, será que é possível uma ciência das quantidades intensivas? Vejo uma grande diferença entre as quantidades intensivas e as quantidades extensivas. De novo, sinto-me bergsoniano. Tomo um único caráter das quantidades intensivas. É muito simples reconhecer uma quantidade extensiva. O que você toma simultaneamente, num instante, é por definição uma unidade. A quantidade intensiva é o contrário. É uma multiplicidade que, num instante, você toma como multiplicidade. Quando você diz: faz 20 graus de calor, você não quer dizer 10 graus + 10 graus. Isso quer dizer: faz a multiplicidade 20 graus que apreendo num instante. Uma multiplicidade apreendida instantaneamente como multiplicidade é uma quantidade intensiva.
Bellour : Quando você utiliza o grau, você utiliza um sistema de codificação, é nesse sentido que eu falava do problema de uma ciência.
Deleuze : Voltamos ao tema de Félix. Assim como o sonho edipiano e as linhas não-edipianas estão ligadas, a intensidade e sua tradução em extensão estão ligadas. Uma ciência das quantidades intensivas seria uma ciência que chegaria a desprender um sistema numérico não extensivo. Isso foi feito mil vezes, e sufocado a cada vez. Os sistemas ordinais, os ensaios de interpretação de números ordinais, as tentativas de Russel, de Meinong… Não podemos colocar a questão: será que uma tal ciência é {232} possível? A questão que devemos colocar é esta: o que faz com que tal ciência tenha sido sufocada? No nível da psicanálise, parece-me que se reencontra o mesmo problema. Por que os estados vividos de um sujeito são traduzidos em fantasma?

Deleuze é interrompido por um telefonema e sai do recinto.

Guattari : Estou de acordo com o que diz Gilles, mas me sinto pouco à vontade, porque, no fundo, creio que o problema não se coloca. Uma ciência das quantidades intensivas é um absurdo. O problema é o do nexo de toda ciência com um campo político, um campo de desejo. Isso não pode ser uma ciência. Isso pode ser, sobretudo, uma política no seio da ciência, no seio da arte, da experimentação da vida cotidiana, do campo revolucionário. Alguém que propusesse uma ciência das quantidades intensivas se reencontraria na mesma posição de um epistemólogo que propusesse um tipo de metalinguagem das quantidades intensivas relativamente às ciências ou à política. Poderíamos muito bem imaginar um althusserianismo das quantidades intensivas com o mesmo resultado desastroso. É por isso que me sinto pouco à vontade. Para mim, as quantidades intensivas são o processo de desterritorialização, isto é, de conjunção de processos. Não pode haver aí uma ciência de conjunções de processos, pois é o caráter próprio de uma política.
Bellour : No artigo da Minuit sinto bem que quando, negativamente, não se pode mais associar, é que se pode ser conectado a uma máquina desejante, e não em virtude de uma dissociação positiva. Não é em virtude de um processo positivo de dissociação, mas de um processo negativo de não-associação.
Guattari : Absolutamente. Não há garantia alguma. Assim como não há garantia de um protocolo revolucionário, não há garantia de se estar numa quantidade intensiva na ordem das ciências, na ordem da arte.

Deleuze retorna.

Deleuze: Ele juntou caracteres às quantidades intensivas, não?
Guattari : Eu disse o contrário do que você havia dito.
Deleuze : Bem. Muito bem.
Bellour : Para Félix é um problema de política. Toda ciência lhe parece cair do lado de uma formalização contraditória com o próprio caráter das quantidades intensivas.
{233} Guattari : O problema das quantidades intensivas é que isso não pode ser uma ciência. É tanto o campo político quanto o campo desejante e quanto o campo da experiência revolucionária. Não se pode imaginar uma ciência que seria um tipo de epistemologia das quantidades intensivas, sobrecodificando todos os outros domínios. A constituição de um discurso científico nunca dará garantia alguma de uma consistência qualquer, de qualquer efeito que seja.
Deleuze : A epistemologia, seguramente não! Você, que fala constantemente em máquina de ciência, a máquina de ciência é de intensidade. A conexão signo-partícula é intensiva. A intensidade é a loucura da ciência.
Guattari: Como loucura da ciência? Como política da ciência, sobretudo!
Deleuze : Concordo. É o sistema signo-partícula. Não falamos dos buracos negros. São buracos de intensidade, quando os buracos são considerados como partículas mais rápidas que todas as outras partículas.

Bellour : Voltemos à . Sua realidade? Por quem? Para quem? Quando? Onde? Como? Até quando?
Guattari : Emprego uma fórmula que utilizo diante de semelhante questão: se alguma vez a esquizoanálise teve de existir, e já existe, mas não pode aparecer no quadro de uma escola, de uma sociedade constituída, de uma corrente, de pressões. Ela só pode ser a conjunção de diferentes experiências locais, de tomadas em consideração do desejo, quer se trate de um instrutor na sala de aula, de uma comunidade que muda seu modo de vida, de um psicoterapeuta em seu consultório, de um grupo de cuidadores num hospital psiquiátrico, de um grupo de militantes que queiram mudar as conexões em suas práticas. Se, num dado momento, há conjunção de diferentes práticas concernentes ao desejo, que fazem com que haja conjunção de uma crítica da burocratização da organização, crítica das conjunções pedagógicas opressivas, das conexões alienantes sugeridas por contratos psicoterapêuticos, então se constituirá uma atividade de análise que será uma interseção de toda uma série de lutas políticas. Ao mesmo tempo, a esquizoanálise será o fato de grupos ou de indivíduos que seriam simultaneamente militantes e analistas, — isto é, totalmente o contrário de pessoas que tirariam sua legitimidade da cooptação de uma sociedade de psicanálise, — {234} ou de gente que segmentaria o campo de sua prática privada, de sua prática terapêutica com leituras significantes relativamente ao campo de lutas revolucionárias. A está em toda parte em que essa questão se coloca, se é que ela se coloca.
Deleuze : Na esquizoanálise há princípios muito gerais. Não se trata de uma coisa que estaria na base de uma escola analítica. Do que se trata? Trata-se de um pequeníssimo número de princípios. Busca das intensidades. Não-figurativo. Inconsciente não-edipiano. Experimentação contra interpretação. Esquecimento contra anamnese. Supressão do eu {moi} e da subjetivação. Enquanto o psicanalista diria, sobretudo: retorne ao seu eu {moi}. Nós dizemos: você ainda não dissolveu suficientemente seu eu {moi}.
Guattari : Nada de neutralidade. Politização. Engajamento na própria estrutura em que as pessoas estão presas.
Deleuze : Não alguém metido a competente.
Bellour : Isso vem a dizer que não importa quem pode ser esquizoanalista.
Deleuze : Não, não importa quem.
Bellour : Não importa quem, mas todo mundo.
Deleuze : Todo mundo, que seja.
Guattari : Grupos militantes, grupos-sujeitos.
Deleuze : Creio que há um ponto essencial na diferença entre esquizoanálise e psicanálise. O golpe genial de Freud foi descobrir o inconsciente e ser inimigo do inconsciente. O inconsciente é o que é preciso reduzir pela análise. Félix diz muito bem que nosso problema é totalmente outro, contrário desse: em que condições pode-se produzir inconsciente? Aí, vê-se bem a diferença teórica e prática entre a psicanálise e nós. Para nós, não há inconsciente. Para a psicanálise, há um inconsciente. Você tem um no dorso, e eu quero interpretar você. Quanto a nós, dizemos: aí não há o inconsciente, e eu quero tentar fazê-lo em você. O problema é: em quais condições, alguém cujo inconsciente está por natureza sufocado, reprimido, e não recalcado, cujo inconsciente não existe, em quais condições esse inconsciente pode ser produzido. Vê-se que todas as instâncias sociais, aí compreendida a psicanálise, são feitas para impedir a produção de inconsciente. Quando Félix analisa as instâncias ditas terapêuticas da setorização, vê-se muito bem, em nível concreto, que tudo é feito para que o tipo {235} que vai ao psicanalista, por natureza, não tem chance alguma de falar. Ele pode falar, mas não tem chance alguma de fazer passar o menor enunciado no que ele diz. Isso porque é imediatamente tomado numa máquina na qual, seja lá o que ele diga, está sufocado de antemão. De antemão, ele está perdido. Por mais que ele grite, por mais que ele urre… É por isso que, quando Green nos censura por não levarmos em conta sofrimentos do neurótico, isso é bizarro, porque, por mais que o neurótico grite no divã, nada se passa. Não é que nada se passe por erro, é que o sistema da psicanálise é feito para que nada se passe.
Guattari : Tudo é assentado sobre uma rede preestabelecida na qual o apogeu da interpretação devém isto: tudo o que diz o tipo se limita ao silêncio do analista, pois é a mais forte interpretação. É mesmo uma intensidade de alta sedução, pois o silêncio do analista devém música celeste. É a resposta a tudo o que pode se apresentar . É uma música muito sedutora, pois é uma música de morte.
Deleuze : Sim, é uma música de morte.
Guattari : A pulsão de morte é o silêncio do analista. Então, essa efetuação suprema da análise no silêncio… e custa caro semelhante silêncio! Em vez disso, uma multiplicidade sendo dada, um tipo vem: o que se poderia colocar bem em conexão para que sua conexão com o desejo seja de outra natureza? Em vez de se colocar o problema: o que é preciso suprimir da situação? O que é preciso reduzir? Para nós é: o que é preciso complexificar? Como tornar mais complexo os complexos, por conexão real de máquinas reais para que haja outras engrenagens, outras ramificações? Qual é o papel de um grupo analítico ou de um analista? É o de ajudar a decifrar as potencialidades de conexões. Registrar, marcar que certas coisas poderiam ser experimentadas mais tarde, que talvez o próprio analista pode colocar aí algo seu, pode encontrar engrenagens, pode intervir.
Bellour : Alguém ou um grupo vem ver quem? Onde?
Guattari : Pouco importa. Esse não é o problema. Isso pode ser uma escola, um grupo de militantes, um consultório de grupo ou um tipo sozinho. Não é porque sendo grupo será melhor. Um grupo pode ter a pior política. Pode-se ver grupos de psicoterapia familiar.
Bellour : A partir daí, você sente como total a permissividade?
{236} Deleuze : Total.
Bellour : No sentido de que qualquer um possa se erigir, produzir-se como esquizoanalista?
Deleuze : Completamente, pois Félix diz muito bem: a diferença de natureza não está entre análise dual e análise de grupo. Ele tem completamente razão. A diferença está totalmente alhures. Por exemplo, o MLF nt faz interpretação maciça, abominável. Não pára de interpretar. Em troca, concebe-se uma conexão dual que não seja interpretativa. E bem mais, pensa-se que o incesto irmão/irmã é uma escapatória esquizoanalítica completamente diferente de toda conexão edipiana. Isso pode verter no Édipo, se a irmã é o substituto da mãe, e isso pode abrir coisas fantásticas. Aí não há regra alguma. A regra está no nível da interpretação: será que eu interpreto ou será que eu não interpreto? É por isso que não são princípios abstratos. Ora, não interpretar implica uma ascese, uma disciplina fantástica, uma espécie de yoga…
Guattari : uma permanente micro luta de classe.
Deleuze : Desde que haja interpretação, há merda. Ah, você fez isso? Por quê? É o contrário da liberdade. A velha oposição determinista/liberdade deve ser transposta em interpretação/experimentação. Experimentação não quer dizer: eu jogo com você. Isso quer dizer: eu tento alguma coisa com você, que de modo algum é uma renovação relativamente à sua infância. Mais uma vez, nossa dualidade não passa por infância/adulto. Quem é esquizoanalista? Não importa quem relativamente a não importa o quê, com a condição que isso não passe pelo contrato ordinário. Se você pergunta: qual é a posição de Félix relativamente à sua situação de analista? Ela é análoga à minha posição de professor. Fazer passar o máximo de coisas possíveis através de uma estrutura já existente, apelando ao que as pessoas fazem alhures. Elas não nos esperaram. Quando dizemos que não queremos fazer escola, é claro que fazê-lo seria uma cagada tal que não poderíamos fazer mais nada.
Guattari : Não somos capazes disso.
Deleuze : Não somos capazes, não estamos afim. Não é nosso caso. Em troca, quanta gente em seu canto inventa esquizoanálise, é muito evidente.
Bellour : Vocês promovem, como sendo produtivo, unicamente a possibilidade de uma espécie de poli-explosão, o fato de que isso possa se passar {237} nos quatro cantos da sociedade e da geografia, sem qualquer possibilidade de racionalização?
Deleuze: Nós somos os primeiros a anunciar alguma coisa que se passa e que não nos esperou, a saber que as coisas não mais passarão pela leitura de Freud e da psicanálise, mas passarão pela experimentação, o que os norte-americanos fazem há muito tempo: as coisas se farão pela não-cultura e não pela cultura.

Bellour : Tenho uma questão relativamente às crianças. A família: como organizar sua destruição? As crianças: como elevá-las? Será preciso fazê-lo? Como e com quem?
Guattari : Quem se importa.
Deleuze: Não se sabe. A questão está regulamentada. Nenhuma ideia a ser dada. Salvo o que dissemos anteriormente, que me parece muito importante: o tempo em que a criança faz suas lembranças edipianas de infância é o mesmo tempo em que ela leva sua infância não-edipiana.
Bellour : Eu dizia isso relativamente à fatalidade do sistema no qual as crianças nos tomam e são tomadas.
Deleuze : Não há fatalidade do sistema no qual elas estão tomadas. O que elas fazem? Elas sonham com a bomba. Julien, meu filho, com o quê ele sonha? Ele sonha com petardos, explosão, e isso não é edipiano.
Bellour : Elas têm problemas com seu papai, e isso é edipiano.
Deleuze : É porque elas fabricam suas lembranças de criança ao mesmo tempo. É preciso distinguir bloco de infância — fórmula de Félix — e lembrança de infância. Então, Freud, os freudianos e os dissidentes de Freud têm posto sempre a questão: não há lembranças de infância que vêm após a infância, mas que são retrojetadas?
Guattari : As lembranças-telas…
Deleuze : É completamente idiota isso.
Guattari : Há tão somente lembranças-telas…
Deleuze : … e elas são fabricadas no próprio momento. Então, quando meu filho me diz: “eu quero explodir você, papai”, ou quando minha filha dorme no meu leito, é edipiano, os psicanalistas têm razão. Isso já é lembrança de infância. Ela o fabrica ao mesmo tempo. Ela já está na lembrança. É para quando ela terá trinta anos: ah, eu dormia no leito de papai!
{238} Guattari : Ela prepara seu porvir.
Bellour : Como se pode batalhar para mudar isso?
Deleuze : Não é preciso batalhar para mudar isso.
Guattari : É preciso fazer outra coisa.
Deleuze : O que conta é liberar os blocos de infância o máximo possível, em oposição às lembranças de infância, uma vez dito que as lembranças de infância se fazem ao mesmo tempo que os blocos de infância. Os blocos de infância, é quando meu filho diz: “eu quero explodir o liceu Chaptal”, e não “eu quero explodir papai”, pois são os dois ao mesmo tempo que ele quer. Aí, também, há sempre essa mistura, essa ramificação no campo social que os psicanalistas ignoram completamente. E quando ele diz: quero explodir o liceu Chaptal, ele não quer dizer: quero explodir papai. E quando minha filha dorme em meu leito, ela não quer dizer: quero fazer amor com papai. Ela quer dizer isso, mas ela quer dizer outra coisa também. Eu quero fazer por mim alguma coisa, quero fazer minha própria vida etc.
Bellour : E você pensa que não é preciso lutar contra um…?
Deleuze : Seguramente não.
Bellour : … mas, a partir de um, liberar o outro?
Deleuze : Evidentemente.
Bellour : … e tentar lutar certamente muito contra um o faz ressurgir tanto mais?
Deleuze : Completamente. O problema não está aí, com efeito. Que seja numa família unida ou desunida, no internato, em sociedade, os mesmos dois aspectos se apresentam. Para cada caso, encontrar a saída, se possível.
Bellour : O que há de surpreendente é que na experiência cotidiana, material, o que mais fortemente se sofre, o que mais se percebe como atual, paradoxalmente, na conexão com a criança, é infelizmente o que salta da lembrança.
Deleuze : Evidentemente. Pois a sociedade toda é feita para isso. A sociedade toda é feita para dizer à criança: é com seu papai e com sua mãe que você tem de se haver. Não é de admirar. O liceu é bom, é sagrado e se você o ataca é por causa do seu pai e de sua mãe. A psicanálise serviu antes de tudo para isso. A criança é inteiramente orientada rumo a isso: o professor é a imagem do seu pai.
Bellour : Você não pensa que a família, não a família simbólica, mas a família real, favoreça de modo incrível esses processos?
{239} Deleuze : Sim, evidentemente. Mas, com isso, ela preenche tão somente sua função social. Sua função social é derivar toda agressividade política da criança, uma vez dito que a criança é política desde seu nascimento. A criança é politizada desde seu nascimento, enquanto criança pobre ou rica. Ela é sexuada política. Freud diz: a criança é sexuada, mas ela não é política. Não a torne política. Quanto a nós, dizemos: ela é sexuada política. Não há sexualidade sem política. Ser sexuado, isso quer dizer viver como rico ou como pobre. Discernir uma menina é discerni-la como filha do patrão ou do barman etc. Não dizemos outra coisa. Se a psicanálise não atinge isso, então a psicanálise é uma merda. A sexualidade de uma criança não está no quadro familiar, é a criada, a mulher rica, a mulher pobre. Desde que nasce, ela discerne isso. Portanto, ela é sexuada política. A esquizoanálise é feita não importa onde, não importa quando, com não importa quem, sem contrato, sem transferência.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020


Bem é já que estamos falando sobre cinismo eu queria começar com uma citação do Stalin, que é a seguinte:

"O que poderia ser necessidade para tal revolução linguística se demonstrarmos que a linguagem existente e a sua estrutura são fundamentalmente adequadas às necessidades do novo sistema. A antiga superestrutura pode e deve ser destruída e substituída por uma nova no curso de alguns anos, a fim de dar livre curso o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. Mas como poderia uma linguagem existente ser destruída e uma nova construída em seu lugar no curso de alguns anos, sem causar anarquia na vida social e sem criar a ameaça de desintegração da sociedade. Quem a não ser um Dom Quixote poderia dar a si mesmo tal tarefa?".

Então essas são palavras de Joseph Stalin a respeito de um debate que marcou época na antiga União Soviética. A questão girava em torno da relação entre linguagem e revolução. Uma revolução política modifica ou não a estrutura da linguagem?
Seria linguagem uma superestrutura, transformada quando rupturas sociais fundamentais ocorrem? Como se vê a resposta de Stalin é negativa. A vida da linguagem passaria ao largo das transformações econômicas e sociais. Ela pareceria ter uma espécie de neutralidade política, pois destruir uma linguagem existente e construir uma nova em seu lugar só poderia implicar na anarquia da vida social e na ameaça de desintegração da sociedade.
No entanto de certa forma Stalin tinha razão. Há uma anarquia, há uma quebra de arché[1], há uma eliminação da ilusão da origem e do fundamento quando uma linguagem que entra em dinâmica de ruptura. Nós poderíamos partir desse ponto a fim de nos perguntarmos sobre em que condições paralisações políticas ocorrem. Porque há momentos nos quais a imaginação política parece entrar em compasso de bloqueio, nas quais mesmo sendo atravessada por descontentamentos profundos, revoltas de toda ordem, sociedades parecem não ter mais força para se transformar. Não seria exatamente porque há uma linguagem nova que deveria emergir e, no entanto, ela não emerge. Ou seja, a linguagem não aparece como um motor de transformação política. É isso que gostaria de discutir nesse fechamento de um ciclo chamado "Impasses da Racionalidade".
Começamos com uma questão de princípio, pois nos perguntemos pelas condições de possibilidade daquilo que podemos chamar de lutas e conflitos sociais. Essas mesmas lutas e conflitos que fornece a base da experiência política. Não se trata aqui de operar nesse registro imediato da presença de experiências de sofrimento social e injustiça. Façamos uma questão ainda mais elementar, a saber, como sociedades traduzem experiências de sofrimento social? Como elas interpretam processos de injustiça?
Porque vejam há aqui uma questão vinculada necessariamente a dimensões de interpretação e de tradução. Nós podemos sentir sofrimento, mas há um exercício suplementar que consiste em traduzi-los sob a forma de uma demanda social, interpretá-lo sob a forma de ações coordenadas. Uma sociedade é fundada entre outras coisas numa gramática de inscrição de experiências sociais de sofrimento em modos específicos de articulação de demandas. Eu insisto nesse ponto porque eu creio que se trata de salientar a existência de algo que nós poderíamos chamar de gramática social de conflitos. Essa gramática é condição da possibilidade para toda experiência política. Tal gramática determina a forma possível das demandas e das lutas. Ela configura a estrutura dos sujeitos políticos e define as modalidades gerais de agência possível.
Na verdade tal gramática determina os limites do que é possível e do que é impossível para uma sociedade realizar e imaginar. A gramática define o que pode ser ouvido e percebido, o que pode nos afetar e nesse sentido ela é similar a uma gramática linguística, com sua sintaxe, com a sua semântica e com os seus princípios gerativos. Eu insisto nesse aspecto porque uma questão fundamental consiste em se perguntar a respeito de qual gramática social de conflitos nós respeitamos? Qual gramática configura forma da nossa revolta?
 Eu gostaria de defender aqui a tese de que nós continuamos a respeitar a mesma gramática que define os modos normais de funcionamento dos nossos vínculos sócio políticos. Por isso as demandas de ruptura que nós enunciamos tendem a reiterar os modos gerais de determinação social.
Nós falamos a mesma linguagem daqueles contra os quais nós nos batemos, por isso nós podemos dizer que é uma gramática que se for fortalece agindo em nós, agindo através de nós, mesmo quando nós parecemos encenar nossa revolta e nosso desejo de ruptura.
Vladimir Maiakóvski dizia que não há arte revolucionária sem forma revolucionária. Nós podemos dizer algo semelhante não há política revolucionária sem forma linguística revolucionária. Uma forma capaz de romper a gramática social de conflitos hegemônica em nossas sociedades. E para rompê-la é necessário apoiar-se naquilo que é gramaticalmente impossível. Fazer circular enunciados políticos gramaticalmente impossíveis que constituem enunciadores emergentes.
Nesse sentido uma questão fundamental seria o que atualmente é gramaticalmente impossível enunciar? É em direção ao ato de dar corpo a esse impossível que caminha a emergência dos processos de transformação social. Para tanto, tentemos traçar algumas coordenadas gerais do que seria a gramática de nossos conflitos sociais. O que nos obriga a pensar como se organiza os pressupostos fundamentais do que nós poderíamos chamar de horizonte de possibilidades imanentes às nossas democracias liberais.
Pois a tese que eu gostaria de defender aqui consiste em dizer que enunciados impossíveis são atualmente aqueles que são falas desprovidas de lugar, que abrem um campo de implicação genérica na qual todo e qualquer um pode assumir tal fala. Elas são falas marcadas por uma universalidade destituinte, ou seja, universalidade cuja emergência destitui as formas atuais de presença e de existência.
Os enunciados impossíveis são ainda aqueles que não são enunciados por sujeitos, mas por coisas em um animismo reverso. As situações sociais nas quais não são sujeitos que falam, mas são as coisas que falam dos sujeitos.
Para nós quando as coisas falam dos sujeitos isso significaria uma forma profunda de alienação, pois nesse caso eu seria como coisa como se eu estivesse em um estágio avançado de auto reificação.
No entanto, nós devemos nos perguntar se um dos eixos maiores de nossa servidão se encontra exatamente na ilusão de que tudo que é coisa deve ser compreendida como a figura mesma da ausência de liberdade e de ação. O que seria um mundo no qual as coisas agem em nós de forma livre? E para discutir esse ponto acho que faz se necessário se perguntar o que é possível dizer nossas democracias liberais.
Eu gostaria de defender que o eixo fundamental do horizonte de possibilidades imanentes às nossas democracias liberais não está no conceito de dêmos, de povo, ou seja, não está vinculada à questão: quem é o povo? Quem é aquele que fala como povo e do qual a legitimidade imanaria? O eixo fundamental está no conceito de kratos[2], de força, ligada ao exercício da soberania e do poder. Que tipo de força a democracia liberal reconhece? Como ela configura seus sujeitos? Como ela define a sua existência?
A tese a ser defendida aqui é que a força da democracia principalmente sua versão liberal tem três atributos fundamentais: primeiro ela expressão de uma ipseidade,[3] ela é o exercício de um estar junto e de pertencer a si mesmo. Como lembrará de Derrida o kratos na democracia é acima de tudo uma ipse[4].
Nesse sentido ele pode definir os modos de existência e organizar os regimes de fala a partir dos usos políticos da noção de identidade e de propriedade, já que na democracia a força é uma propriedade dos agentes e não o que lhes atravessa. As demandas sociais passam a existência como multiplicidade de demandas organizadas em sua enunciação identitária.
Nesse contexto, liberdade aparece como estar sob a jurisdição de si mesmo, pertencer a si mesmo, como uma autonomia conquistada. No entanto esse conceito de liberdade como identidade socialmente realizada e autonomia conquistada impede uma real organização de processos políticos que não visam a afirmação do potencial de deliberação e de escolha consciente dos sujeitos, mas que visa a transformação da agência, em uma abertura ao que se organiza de forma inconsciente.
Nesse horizonte não há espaço por exemplo para uma agência que não seja exatamente dos sujeitos, mas dos objetos. Perpetuasse assim, o dogma moderno de que a única forma de agência é aquela atribuída aos sujeitos e que a única forma possível de atribuição de agência aos objetos seria através das temáticas do fetichismo, da alienação e da reificação. Como se toda causalidade externa a determinar a ação dos sujeitos deve ser vista como alienação a ser combatida.
Essa é uma maneira de submeter a liberdade a noção de ser proprietário de si mesmo, impedindo a emergência não apenas de uma comunidade de sujeitos livres, mas mais importante, uma comunidade de sujeito e de coisas livres.
O que é a única realização social efetiva do conceito de liberdade, uma relação social na qual o sujeito e coisas estão livres, não submetidas a posse, a função e a unidimensionalidade.
Segundo ponto: o kratos da democracia é uma força que se realiza com a plasticidade da representação. A representação é a gramática que define o modo de existência das identidades no interior da democracia, ela é o dispositivo geral de organização do campo do comum. Nesse sentido mesmo que acontece em esferas anti-institucionais e não estatais tende a se realizar como representação, pois na democracia só o que representável pode existir.
Eu insistira nesse ponto, porque uma das ideias fundamentais da política moderna é a noção de representação. Nós aprendemos a compreender o espaço político como um espaço de conflitos organizados a partir de uma dinâmica específica de constituição de atores. Essa dinâmica ela estaria necessariamente ligada aos processos de representação.
Assim só poderiam participar do campo de conflitos políticos aqueles que se submeteram a representação, ou seja, aqueles que representam algo que fala em nome de um lugar que representam, seja esse lugar um grupo, um setor de interesse, um partido, uma associação, um gênero, em suma o pressuposto central aqui é “uma multiplicidade não se apresenta de forma imediata”, ela só pode existir como algo representado.
Várias consequências se seguem daí, por exemplo, dentro dessa visão uma sociedade plural seria aquela que permitiria a emergência de vários representantes e representações ao mesmo tempo. Quanto mais representações diversas, mais plural a sociedade, no entanto, por mais diversas que tais representações sejam elas devem partilhar algumas coisas em comum, pois a representação tem suas regras, têm seus modos de contagem, tem sua gramática, tem seus acordos. Aceitar sua gramática significa aceitar como as lutas se darão, em qual espaço, como os conflitos serão resolvidos. Nesse sentido existir politicamente é ao mesmo tempo, para tal forma de pensar, aceitar-se submeter a essas regras, a esses modos de contagem, a essa gramática e a esses acordos. A essa submissão nós chamamos, normalmente, democracia.
Por fim o kratos da democracia é uma força indissociável da internalização da sua própria suspensão, pois o funcionamento normal da democracia liberal exige que a força do dêmos seja restringida a espaços eleitorais, isso enquanto as múltiplas esferas das relações econômicas entre classes, das relações de trabalho, das relações de gênero e raciais, assim como os usos da força em situações excepcionais de insegurança são geridas a partir da violência e da anomia.
As conquistas das lutas sociais em relação às modificações do ordenamento jurídico tendo em vista a defesa de classes vulneráveis demonstram-se na democracia frágeis, provisórias e de alcance extremamente limitado.
A democracia não é, tal como nós a conhecemos até hoje, o regime de garantia da integridade dos sujeitos através do exercício da lei. Ela é o regime que possibilita múltiplas formas de suspensão da lei e de plasticidade de seus modos de aplicação. Não há democracia liberal sem violência disciplinar. Essa violência muda e não ordenada juridicamente nas fábricas, nas escolas, nos hospitais, nos campos. Violência das técnicas de recursos humanos, da ergometria das linhas de montagem, da dopagem contra o sofrimento psíquico.
Assim a democracia que nós conhecemos funda-se uma noção de força, compreendida como que se exercita enquanto identidade, como que passa a existência enquanto representação e como que é impotente diante da violência da sua própria negação sem retorno. Nesse sentido se nós estamos a discutir as modalidades de configuração da força própria democracia nós deveremos discutir as possibilidades de superar um exercício político baseado na identidade na representação e na negação interna de seu próprio ordenamento.
Isso nós queremos lutar por uma democracia por vir não aqui nós conhecemos até agora.
Levando-se em conta perguntemo-nos pelas formas com que os enunciados de resistência se organizam atualmente. O primeiro é evidente que eles assumem para si as estratégias de afirmação identitária uma identidade é um modo de determinação atributiva. O que define uma identidade são os predicados que o possui e que me singularizam. Esses predicados são propriedades do sujeito, ou seja, a existência do sujeito é definida pela soma de predicados dos quais ele é proprietário
Dentro desse horizonte o que me leva à existência são os predicados que me singularizam e que me dão visibilidade. Como se fosse questão de modificar a estrutura do poder através do ato de abrir espaço à identidades invisibilizados e imperceptíveis, ou seja, trata-se de modificar o horizonte do visível de ampliar o campo dos que têm voz, mas sem modificar a gramática que define o regime geral de falas e de visibilidade. Trata se de assumir o espaço dentro de um campo já estruturado que determina em que condições algo se torna visível
O resultado não poderia ser outro do que referendar o princípio mesmo que define a nossa sujeição, a saber, a ideia de que quem fala, fala apenas por si mesmo, apenas em nome do que é seu, do que é sua propriedade. Quem fala, fala a fim de fortalecer o que lhe é próprio, definir o horizonte do que são seus próprios atributos. Em última instância só há indivíduos proprietários.
A questão gira apenas em torno de quem são os proprietários reais quem tem o direito de ocupar lugares específicos de fala. A gramática da nossa experiência política é uma gramática de proprietários, mesmo quando ela fala em coletivos e propriedade comum, pois coletivos nesses casos acabam por se tornar generalizações identitárias baseadas muitas vezes na partilha de experiências gerais o sofrimento e violência. Propriedade comum é apenas uma outra forma de posse, uma posse da comunidade como indivíduo coletivo. O que demonstra como livrar-se da hegemonia da propriedade é uma operação muito mais complexa do que inicialmente poderia parecer.
Nesse ponto nós podemos nos perguntar como seria possível uma fala capaz de romper com tal gramática de propriedades e atributos que parece colonizar nossas formas de enunciados políticos. Pois uma fala dessa natureza poderia abrir espaço a outra forma de existência, uma existência radicalmente distinta daquela que se autoriza no interior de nossas formas hegemônicas de vida.
Eu gostaria de afirmar que isso só será possível através de uma nova recuperação de posições universalistas, mas para recolocar tal tópico em discussão há de se reorientar o que significa o universalismo nesse contexto.
Porque durante décadas toda perspectiva universalista foi vista como profundamente normativa e incapaz de dar espaço à produção de singularidades. Universalismo foi sinônimo de partilha geral de atributos e normas de constituição de um horizonte de homogeneidade, como se fosse questão de constituir conjuntos cujos elementos se define pela presença dos mesmos atributos e características.
Não foi difícil defender que se universalismo era no fundo uma estratégia colonial. Ele se baseava em uma noção de história mundial concêntrica e fundado em um solo europeu. Tudo se passava como se as experiências de emancipação e de conflitos sociais que ocorreram na Europa devessem ser paulatinamente repetidas em outras partes do globo, racionalizando a vida social a partir da generalização de um modelo cuja origem cuja matriz será sempre europeia. Ou seja, tudo se passava como se houvesse um movimento geral de ressonância do centro para as margens, com uma pedra que caiu em um rio.
É claro que esse modelo precisa sustentar uma visão de processo histórico marcado pelas dinâmicas de atraso e de antecipação. Algumas experiências sociais encontrariam-se atrasadas. Elas preservariam estruturas arcaicas que deveriam ser ultrapassadas através do contato com sociedades em um tempo avançado, pretensamente avançado. Sociedades que se anteciparam no interior de um processo geral de desenvolvimento.
O fundamento dessa estratégia concêntrica se encontra na elevação de uma sociedade de indivíduos a horizonte global de emancipação social. Essa que se constituiu na Europa a partir do século XVII. A figura do indivíduo que apareceu historicamente em solo europeu e que é resultado de uma profunda articulação entre temas teológicos, psicológicos e econômicos, seria o fundamento real das proposições universalistas. Como se as lutas sociais em várias partes do mundo fossem no fundo lutas de generalização da figura do indivíduo, com seus direitos, com as suas liberdades, com seus interesses. Elevação dessa figura à condição de vetor real de emancipação global.
O universalismo que conhecemos até agora não é apenas a tentativa de generalização de um horizonte social masculino, falocêntrico, branco e heteronormativo, ele é pior ainda.
Ele é a tentativa de generalização do indivíduo a modo geral de existência das subjetividades. A história universal não é apenas a história da universalização do capitalismo como um modo geral de produção. A despeito das várias estruturas distintas de desenvolvimento no interior do sistema centro-periferia. A história universal foi até agora a tentativa de generalização do indivíduo como forma de existência e de emancipação. E notemos que da teologia cristã o indivíduo trouxe a própria noção fundadora de autonomia, baseada na pretensa capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, ou seja, de ser causa de si mesmo. Um pouco como deus é a figura maior daquilo que unifica a vontade de ação, causa e efeito.
Da economia capitalista ele trouxe a noção de ação racional como maximização de interesses através do cálculo de aumento de prazer afastamento do desprazer. E nesse contexto nós podemos insistir que uma universalidade descolonial, porque ela é possível, seria ao mesmo tempo uma universalidade não concêntrica e radicalmente desidêntica e anti-predicativa.
O primeiro aspecto se vincular a uma outra noção de história universal. Há uma história universal (eu sei o peso de falar essas coisas, mas tudo bem) que não é a descrição irresistível de processos de contágio de lutas e experiências políticas que ocorrem inicialmente no centro do capitalismo mundial.
Na verdade há uma história mundial que não opera de forma concêntrica, mas que opera sob a forma de ressonância. Ela parte do princípio de que experiências de emancipação de liberdade estão presentes em todas as formas de vida dispersas geográfica e historicamente.
Essas formas podem entrar em ressonância, ou seja, experiências locais podem fazer ressoar experiências em outras localidades criando uma espécie de constelação. Ou seja, não se trata de contrapor a história universal a uma perspectiva que libera a força das localidades e das territorialidades singulares. Trata-se de contrapor uma falsa história universal à uma história mundial descolonial, capaz de colocar em pé de igualdade múltiplas emergências locais de tensões em direção à liberdade.
O que significa é claro que as experiências dispersas de liberdade não são indiferentes umas às outras elas se contaminam, mas só podem se contaminar no interior de uma história mundial.
Mas tentemos entender melhor nesse ponto o que significa dizer que uma democracia efetiva, uma democracia por vir, as coisas estariam livres.
Uma forma de pensar esse problema passa pela tentativa de compreender o que pode ser um kratos uma força que não seria mais a expressão da afirmação proprietária da auto-identidade. Um kratos que por isso mesmo não pode mais ser pensado como expressão do exercício associativo de indivíduos em defesa de seus sistemas de interesses ou da capacidade de deliberação comum própria a indivíduos associados.
Pensemos esse kratos em três níveis de relações sociais atrás a saber: a relação aos objetos, a relação aos sujeitos e a relação a si.  
(eu termino um pouco por aqui)
O primeiro desses níveis a saber, a relação aos objetos, é normalmente um nível mais negligenciado quando a questão de reflexões a respeito das dinâmicas de emancipação. Porque nós estamos profundamente colonizados pela ideia de que o trabalho produz o direito de posse.
Aquilo no qual o trabalho é meu. Um povo, como sujeito político coletivo, como um trabalhador coletivo, deveria também aparecer como proprietário dos objetos nos quais ele trabalha.
Seguindo esse esquema a emancipação social só poderia ser o ato de tomar possessão dos objetos cuja fonte de existência são o meu trabalho ou trabalho do povo do qual faço parte. Ou seja, coisas aparecem aqui como está a serviço de pessoas, como que pode ser submetido a uma relação de propriedade personalizada. Nós vemos aqui uma forma de emancipação que não escapa da generalização das relações de propriedade de usufruto conectado à propriedade e nesse sentido nós podemos dizer que apenas de uma sociedade de proprietários, em uma sociedade na qual estatuto fundamental de membro confunde-se com um estatuto de proprietário, só nessa sociedade que podem existir coisas.
Nas sociedades nas quais pessoas são livres o preço a pagar por tal liberdade é que as coisas estejam sujeitas à servidão. Assim se São Tomás afirmava que pessoa era o domínio no interior do qual a razão pôde expressar o domínio dos seus próprios atos, como autor dos seus próprios atos é porque para nós as coisas não agem, elas são ativadas por nós, mas nós podemos perguntar se o verdadeiro conceito de emancipação social não seria exatamente a noção de que uma sociedade de sujeito livres exige uma sociedade de sujeito e coisas livres.
Pois é possível que a emancipação das coisas seja a primeira condição para a emancipação dos sujeitos, o que nos obrigará a aceitar a existência de um kratos que vem das coisas, que a afecção das coisas nos sujeitos a partir de uma dimensão involuntária externa.  Como um país como o Brasil que criou a sua noção de desenvolvimento através da ilusão da tábula rasa de uma natureza a ser vencida, colonizada, como uma espécie de colonialismo interno, a ideia de que as coisas não são propriedades de ninguém é impensável. E o resultado pode ser o tipo de catástrofe que nós observamos a cada dia neste país.
Por outro lado falar emancipação das coisas significa que longe de serem instrumentos da afirmação das relações de possessão as coisas podem aparecer como que nos causa e como que haja em nós sem estar vinculado à vontade de uma pessoa, a deliberação de uma consciência. Um pouco como essas obras de arte que nos afetam sem serem exatamente a expressão da deliberação de uma pessoa, porque elas não são apenas a sedimentação dos circuitos de histórias que as compõem, elas são também a força dos seus corpos, dos seus materiais, dos caminhos das suas materialidades da sua vida própria.
Um kratos liberado da metafísica da propriedade seria o reconhecimento da força das coisas em nós em nossas ações. O exercício de tal kratos pode ser a condição para uma sociedade na qual objetos nos afetam em sua impropriedade, em sua inapropriação. Nós estamos a falar de uma sociedade na qual os objetos seriam inapropriáveis, na qual eles não seriam nem propriedade individual nem propriedade coletiva, mas a expressão de que vivemos em um circuito de objetos que nos afetam e não nos são próprios.
Uma sociedade democrática seria aquela na qual as coisas não existem mais na forma do que poderia ser possuído, daí porque a relação entre sociedade e natureza é tão fundamental dentro de um horizonte efetivo do que pode significar democracia. Nenhuma reconstituição da biopolítica que nos governa pode se realizar sem começar pela destituição da centralidade das relações de propriedade na definição da vida social.
Eu terminaria justamente dizendo que isso interfere na própria noção do que nós entendemos por sujeito, pois sujeitos teriam as marcas dos objetos que lhes afetam e que eles portam. O sujeito traria um núcleo do objeto em si mesmo o que modifica radicalmente o que nós entendemos por “si mesmo”.
Essa emergência de novos sujeitos políticos é inseparável de emergência de um sujeito descentrado. Os sujeitos descentradas pelo que aparece a eles como involuntário como “opa”, como um objeto. Tal descentramento nos obriga a repensar os paradigmas da decisão e da deliberação como cálculo de meios e fins que nos acompanha desde Aristóteles.
Por outro lado um kratos não mais conectado à força de permanecer idêntico a si mesmo seria um exercício de agir a partir do que nos despossui. Isso significa agir a partir do que desconstitui nossa formação como povo, pois essa força não constitui uma identidade coletiva, nem uma interdependência baseada na solidariedade necessária diante do reconhecimento de nossa vulnerabilidade.
Esse modelo baseado na cooperação de sujeitos autônomos ainda é muito dependente de um modelo de agência fundado no domínio de si, no domínio disciplinar de si por uma consciência definida como um sistema de interesses. Mas a política ela pode se tornar o espaço da desconstituição da identidade e da emergência de um comum que não é apenas a extensão limitada do potencial das relações humanas. Política como a integração do que até então foi compreendido como não humano como coisa.
Lembrem por exemplo como jovem Marx falava sobre uma conexão multilateral a natureza, de um metabolismo entre humano e natureza que poderia liberá-la da condição de mero objeto, abrindo a experiência social a formas diferentes de pensar a dialética entre natureza e história.
Lembrem como a revolução francesa só se transformou realmente uma revolução universalista quando os seus ideais foram tomados, foram enunciados por aqueles que até então eram vistos como coisas, como ex-escravos. Só nesse momento ela de fato foi uma revolução,  quando ela foi anunciada na França, mas no Haiti
Para concluir, eu só diria que seria necessário levar em conta o fato dessas proposições poder em sua muito genéricas para alguns, ainda mais agora, mas há de se argumentar que isso não é um problema. Adorno costumava dizer que a antecipação da forma de uma sociedade reconciliada é um atentado contra a própria reconciliação. Porque os sujeitos mutilados que nós somos não podem imaginar o que é liberdade social sem se servir de modelos de organização próprios a situação de guerra civil na qual nós vivemos nossas lutas cotidianas de classe, em nossas lutas cotidianas contra a violências própria as nossas democracias liberais ou em nossas lutas cotidianas contra estados necropolíticos como brasileiro.
Calar-se diante do que pode ser o governo de outro kratos não é impotência é uma confiança na força plástica da política e de sua multiplicidade local. A teoria pode nos levar a acreditar que nós temos o desejo e a capacidade de fazer muito mais do que nós fazemos até agora. A teoria pode nos dizer que nós não fomos ainda muito longe com a nossa negação, mas ela não pode antecipar o que recusa toda a projeção porque a teoria se abre diante do que apenas a prática emancipada em seus contextos locais pode produzir.
Era isso, muito obrigado.



[1] O princípio substancial ou substância primordial (a arché, em grego) existente em todos os seres materiais. Ou seja, pretendiam encontrar a "matéria-prima" de que são feitas todas as coisas.
[2] Como sempre, esses dois princípios, democracia e soberania, são ao mesmo tempo e sucessivamente indissociáveis e contraditórios entre si. Para que a democracia seja uma realidade, para que tenha um espaço para afirmar a sua ideia e tornar-se real, necessita do kratos (poder) do dêmos (povo) – no caso em pauta o dêmos global. Necessita, portanto, da soberania, ou seja, um poder maior do que todos os demais no mundo. (DERRIDA, Jacques. Voyous. Paris: Galilée, 2003, p. 12).
[3] Aquilo que é determinante para diferenciar um ser de outro(s); o atributo próprio, característico e único de um ser, que o difere dos demais.
[4] Ipse: demonstrativo, masculino; feminino: ipsa; neutro: ipsum
1.       mesmo
2.       próprio



Palestra do Vladimir Safatle no IV Encontro de Pós-Graduação em Filosofia da USP (mesa de encerramento) - Impasses da Racionalidade23/08/2019 às 19h30

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