terça-feira, 26 de julho de 2022

Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade

 

— . — .1932 | Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade

De quelques mécanismes névrotiques dans la jalousie, la paranoïa et l’homosexualité ]

Tradução realizada por Jacques Lacan [1901-1981] do artigo “Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht, Paranoia und Homosexualität”, publicado por Sigmund Freud [1856-1939] no ano de 1922. Trata-se do primeiro — e, até onde se tem notícia, único — texto de Freud integralmente traduzido e publicado por Lacan. De modo a facilitar o cotejo de alguns termos fundamentais, ao longo desta tradução brasileira os vocábulos apresentados entre colchetes dizem respeito à versão francesa e ao original alemão, respectivamente, da seguinte maneira: [tradução lacaniana | original freudiano ].

Revue française de psychanalyse, 1932, vol. V, n. 3, pp. 391-401

Internationale Zeitschrift Psychoanalyse, 1922, vol. VIII, n. 3, pp. 249-258

A| O ciúme pertence a estes estados afetivos que se podem classificar, assim como se faz com a tristeza [tristesse|Trauer],[1] como estados normais. Quando ele parece faltar no caráter e na conduta [conduite|Benehmen] de um homem, é justificado concluir que sucumbiu a um forte recalcamento [refoulement|Verdrängung], e desempenha na vida inconsciente um papel ainda maior. Os casos de ciúme anormalmente reforçado, com os quais a análise lida, mostram-se triplamente estratificados. Essas três camadas ou graus do ciúme merecem as denominações de:

| ciúme de concorrência, ou ciúme normal;
| ciúme de projeção;
| ciúme delirante.

Sobre o ciúme normal há pouco a dizer do ponto de vista da análise. É fácil ver que ele é composto essencialmente pela tristeza ou dor em acreditar que o objeto amado está perdido, bem como pela ferida narcísica, até onde ela se deixa isolar da anterior; estende-se ainda aos sentimentos de hostilidade contra o rival preferido, e, em maior ou menor medida, à autocrítica que quer imputar ao próprio eu [moi|Ich] do sujeito[2] a responsabilidade pela perda amorosa. Esse ciúme, ainda que o denominemos normal, nem por isso é racional — quero dizer, oriundo de situações [situations|Beziehungen][3] atuais; comandado pelo eu consciente, e só por ele, consoante a relações [relations|Verhältnissen][4] reais. Ele, com efeito, se enraíza profundamente no inconsciente; prolonga as primeiríssimas tendências [tendancesRegungen][5] da afetividade infantil e remonta ao complexo de Édipo (392) e[6] ao complexo fraternal, que são do primeiro período sexual. Resta digno de nota que ele seja vivido por muitas pessoas de um modo bissexual; quero dizer que, no homem, para além da dor em relação à mulher amada e o ódio contra o rival masculino, também uma tristeza — que se deve a um amor inconsciente pelo homem — e um ódio contra a mulher — vista como rival — agem nele para reforçar o sentimento. Sei de um homem que sofria muito fortemente de acessos de ciúme, e que, conforme ele dizia, atravessava os mais árduos tormentos em uma consciente substituição imaginativa à mulher infiel. A sensação, que ele então experimentava, de estar privado de todo e qualquer recurso;[7] as imagens que encontrava para o seu estado — retratando-se entregue, feito Prometeu, à voracidade do abutre, ou jogado em um ninho de serpentes acorrentado —, ele próprio as relacionava à impressão deixada por várias agressões homossexuais que havia sofrido quando menino.

O ciúme do segundo grau, ciúme de projeção,[8] provém, tanto no homem como na mulher, da própria infidelidade do sujeito,[9] realizada na vida, ou de impulsos [impulsions|Antriebe] à infidelidade que caíram no recalcamento. É um fato de experiência cotidiana que a fidelidade, sobretudo a que se exige no casamento, só se mantém à custa de uma luta contra constantes tentações. E, no entanto, aquele que as nega em si sente a pressão por elas exercidas com tamanha força que irá inclinar-se a adotar um mecanismo inconsciente para se aliviar. Ele atingirá esse alívio — digo, a absolvição da sua consciência — projetando os seus próprios impulsos à infidelidade para a parte oposta, a quem ele deve fidelidade. Esse potente mote pode então se servir dos dados imediatos da observação [données immédiates de l’observation|Wahrnehmungsmaterials][10] que dão a ver as tendências inconscientes de mesma sorte da outra parte, e ainda encontraria justificativas na reflexão de que o parceiro ou a parceira muito provavelmente não vale muito mais do que a própria pessoa.[11]

Os costumes sociais deram um jeito nesse comum estado de coisas com muita sabedoria, dando certa margem ao gosto da mulher casada em agradar e à queda do marido pela conquista. Através dessa licença, tende-se a drenar a irreprimível tendência [tendance|Neigung][12] à infidelidade e a torná-la inofensiva. A convenção estabelece que as duas partes (393) não devem, mutuamente, levar em conta esses passinhos miúdos em direção à infidelidade; e acontece, no mais das vezes, que o desejo [désir|Begierde] provocado por um objeto estranho [étranger|fremd] se sacie — em um repatriamento [retour au bercail|Rückkehr] à fidelidade — com o objeto que é o seu. Mas o ciumento não quer reconhecer essa tolerância convencional; ele não acredita que haja parada nem volta nessa via, uma vez que ela tenha sido tomada. Nem que esse jogo social, que é o próprio “flerte”, possa ser uma garantia contra a realização da infidelidade. No tratamento de um ciumento como esse, deve-se se abster de discutir os dados de fato nos quais ele se apoia; só se pode visar a determinação de que ele os aprecie de outro modo.

O ciúme que tem origem em uma projeção como essa já tem quase um caráter delirante, mas ele não se opõe ao trabalho analítico que revelará as fantasias [fantasmes|Phantasien] inconscientes da própria infidelidade do sujeito.[13]

É pior com o ciúme da terceira espécie, ciúme verdadeiramente delirante.[14] Ele também vem de tendências [tendances|Strebungen] à infidelidade reprimidas [réprimées|verdrängte], mas os objetos de suas fantasias são de natureza homossexual. O ciúme delirante responde a uma homossexualidade “fermentada” [tournée à l’aigre|vergorenen][15] e tem o seu lugar inteiramente designado entre as formas clássicas da paranoia. Tentativa de defesa contra uma tendência homossexual demasiadamente forte, ela se poderia deixar circunscrever (no homem) por esta fórmula: “Eu[16] não o amo, quem o ama é ela”.[17]

Em um dado caso de delírio de ciúme cumpre esperar ver o ciúme tirando a sua fonte do conjunto dessas três camadas, nunca somente da terceira.

| A paranoia – Por razões conhecidas, os casos de paranoia subtraem-se, no mais das vezes, ao exame analítico. Contudo, nesses últimos tempos pude tirar, do estudo intensivo de dois paranoicos, algo que para mim era novo.

O primeiro caso foi o de um jovem que apresentava, plenamente desabrochada, uma paranoia de ciúme cujo objeto era a sua esposa, de uma fidelidade acima de qualquer reparo. Ele estava saindo de um período tempestuoso no qual havia sido implacavelmente dominado (394) pelo seu delírio. Quando o vi, ainda apresentava acessos [accès|Anfälle] bem isolados que duravam vários dias, e, ponto interessante, principiavam regularmente no dia seguinte a um ato sexual — que se dava, aliás, de modo satisfatório para ambas as partes. Está-se no direito de concluir disso que, a cada vez, depois de ser saciada a libido heterossexual, o componente homossexual com ela despertado achava por onde expressar-se através do acesso de ciúme.

O doente tirava os fatos, de cujos dados se valia o seu acesso, da observação dos menores sinais por onde, para ele, o coquetismo plenamente inconsciente da mulher se denunciava, ali onde nenhum outro teria visto nada. Ora ela havia roçado a mão, por descuido, no senhor que estava ao lado; ora havia pendido demais o rosto em direção a ele e lhe havia dirigido um sorriso mais familiar do que se estivesse só com o marido. Para todas essas manifestações do inconsciente dela ele mostrava uma atenção extraordinária e era bom em interpretá-las com rigor, de modo que, para dizer a verdade, ele estava sempre com a razão e ainda podia invocar a análise para confirmar o seu ciúme. Na verdade, a sua anomalia reduzia-se ao fato de que fazia incidir sobre o inconsciente de sua mulher uma observação demasiado aguda e que atribuía a isso muito mais importância do que ocorreria a qualquer outro atribuir.

Lembremos que os paranoicos perseguidos comportam-se de forma totalmente análoga. Eles também não reconhecem em outrem nada de indiferente e, em seu “delírio de relação”, pleiteiam os menores indícios que os outros, desconhecidos [étrangers|Fremden], lhes dão. O sentido desse delírio de relação [relation|Beziehung] é precisamente que eles esperam de todos os desconhecidos algo como o amor, mas os outros não lhes mostram nada parecido: riem na presença deles, agitam as suas bengalas e até cospem no chão quando eles passam — e aí está, realmente, algo que não se faz quando se tem, por quem está perto, o menor interesse amistoso. Só se faz isso quando essa pessoa é totalmente indiferente, quando se pode tratá-la como o ar ambiente; e o paranoico, quanto ao intrínseco parentesco dos conceitos de “desconhecido” e de “hostil”,[18] não está errado ao sentir uma indiferença como essa, em resposta à sua exigência amorosa, na forma de uma hostilidade.

Suspeitamos, agora, que talvez seja insuficiente a nossa descrição da conduta [conduite|Verhalten][19] dos paranoicos, tanto do ciumento quanto do (395) perseguido, quando dizemos que eles projetam para fora, no outro, aquilo que se recusam a ver em seu foro interior.

Decerto é o que fazem, mas através desse mecanismo eles não projetam, por assim dizer, nada no ar;[20] não criam coisa onde não tem, mas deixam-se, isso sim, guiar pelo seu conhecimento do inconsciente, deslocando para o inconsciente de outrem essa atenção que subtraem do seu próprio. O nosso ciumento reconhece a inconstância de sua mulher substituindo a sua; ao tomar consciência dos sentimentos dela, deformados e monstruosamente amplificados, ele tem sucesso em manter inconscientes os que lhe retornam. Tomando o seu exemplo como típico, concluiremos que a hostilidade que o perseguido descobre nos outros não passa do reflexo de seus próprios sentimentos hostis para consigo. Ora, sabemos que, no paranoico, é justamente a pessoa do seu sexo que ele mais amava que se transforma em perseguidor; com isso, surge a questão de saber de onde nasce essa interversão afetiva, e a resposta que se oferece a nós seria que a ambivalência sempre presente do sentimento fornece a base do ódio, e que a pretensão de ser amado, não sendo atendida, a reforça. Assim, a ambivalência do sentimento presta ao perseguido o mesmo serviço para se defender da sua homossexualidade que o prestado pelo ciúme ao nosso paciente.

Os sonhos do meu ciumento reservavam-me uma grande surpresa. Para dizer a verdade, eles nunca se mostravam simultaneamente à explosão do acesso — mas, no entanto, ainda sob o jugo do delírio —; eles estavam completamente livres de elemento delirante e davam a reconhecer as tendências [tendances|Regungen] homossexuais subjacentes sob um disfarce não menos penetrável que o habitual. Em minha modesta experiência com sonhos de paranoicos, eu não estava longe de admitir que, comumente, a paranoia não penetra no sonho.

O estado de homossexualidade nesse paciente podia ser captado à primeira vista. Ele não havia cultivado nem amizade, nem interesse social algum; impunha-se a impressão de um delírio ao qual seria incumbido a tarefa de desenvolver as suas relações [rapports|Beziehungen] com um homem, como que para permitir-lhe recuperar uma parte daquilo que havia deixado de realizar. A pouca importância do pai em sua família e um humilhante trauma homossexual em seus primeiríssimos anos de garoto haviam concorrido para reduzir a sua homossexualidade ao recalcamento e para barrar-lhe o caminho à sublimação. Sua juventude inteira fora dominada por (396) um forte apego [attachement|Bindung] à mãe. Dos vários filhos ele era o queridinho confesso da mãe, desenvolvendo para com ela um forte ciúme do tipo normal. Quando mais tarde decidiu-se por um casamento — decisão tomada sob o jugo do mote essencial de trazer riqueza à mãe — a sua necessidade de uma mãe virginal exprimiu-se em dúvidas obsessivas sobre a virgindade da noiva. Os primeiros anos do seu casamento não tiveram rastro algum de ciúme. Ele, então, foi infiel à mulher e engajou-se em um vínculo [liaison|Verhältnis] estável com uma outra. A partir do momento em que o temor de uma determinada suspeita lhe fez romper essas relações [relations|Beziehung][21] amorosas, eclodiu nele um ciúme do segundo tipo, ciúme de projeção, por meio do qual pôde impor silêncio às reprimendas atinentes à sua infidelidade. Ele logo se complicou com a entrada em cena de tendências [tendances|Regungen] homossexuais, cujo objeto era o sogro, formando toda uma paranoia de ciúme.

Meu segundo caso provavelmente não teria sido classificado, sem a análise, como paranoia persecutoria,[22] mas fui compelido a conceber esse jovem como um candidato a esse desfecho mórbido. Existia nele, nas relações com o pai, uma ambivalência de uma envergadura totalmente extraordinária. Era, por um lado, o rebelde confesso[23] que havia se desenvolvido, manifestamente e em todos os pontos, apartando-se dos desejos [désirs|Wünschen] e dos ideais de seu pai; por outro, em um plano mais profundo, era sempre o mais submisso dos filhos — aquele que, após a morte do pai, ficou com a consciência de uma dívida de coração, e proíbe a si o gozo [jouissance|Genuß] das mulheres. As suas relações [rapports|Beziehungen] reais com os homens colocavam-se abertamente sob o signo da desconfiança; com o seu vigor intelectual, sabia racionalizar essa reserva, saindo-se bem em ajeitar tudo de modo que seus conhecidos e amigos o enganassem e explorassem. O que ele me ensina de novo é que as clássicas ideias de perseguição podem subsistir sem encontrar no sujeito nem fé, nem anuência. Ocasionalmente, durante a análise, elas transpareciam, mas ele não lhes atribuía importância alguma; e, via de regra, delas zombava. Pode ser que o mesmo se passe em muitos casos de paranoia. As ideias delirantes que se manifestam quando uma afecção como essa eclode, talvez nós as consideremos neoproduções, ao passo que estão há muito constituídas.

Uma perspectiva primordial me parece ser a de que uma instância qualitativa, tal como a presença de certas formações neuróticas, na prática importa menos que essa instância quantitativa, a saber: (397) qual grau de atenção — ou, mais rigorosamente, qual ordem de investimento [investissement|Besetzung] afetivo[24] — esses temas podem concentrar em nós. A discussão do nosso primeiro caso, da paranoia de ciúme, nos havia incitado a atribuir esse valor à instância quantitativa, mostrando-nos que a anomalia consistia aí, essencialmente, neste superinvestimento afetado[25] das interpretações [interprétations|Deutungen] atinentes ao inconsciente alheio. Pela análise da histeria, conhecemos há tempos um fato análogo. As fantasias patógenas, as ramificações de tendências [tendances|Regungen] reprimidas [réprimées|verdrängte], são toleradas por muito tempo ao lado da vida psíquica [vie psychique|Seelenleben][26] normal e não têm eficácia morbífica,[27] até receberem, de uma revolução [révolution|Umschwung][28] da libido, uma sobrecarga[29] como essa; de saída, eclode então o conflito que conduz à formação do sintoma. Assim, somos cada vez mais levados, com o progresso do nosso conhecimento, a trazer para o primeiro plano o ponto de vista econômico. Gostaria também de levantar a questão de saber se essa instância quantitativa sobre a qual insisto aqui não tende a recobrir os fenômenos para os quais Bleuler e outros recentemente quiseram introduzir o conceito de “ação de circuito” [action de circuit|Schaltung].[30] Bastaria admitir que, a um acréscimo de resistência em uma direção do curso psíquico segue-se uma sobrecarga[31] de uma outra via, e com isso a sua entrada em circuito no ciclo que transcorre.

Um contraste instrutivo revelava-se em meus dois casos de paranoia quanto ao comportamento dos sonhos. Enquanto, no primeiro caso, os sonhos — tal como notamos — estavam livres de todo e qualquer delírio, o segundo doente produzia em grande número sonhos de perseguição, nos quais se podem ver pródromos e equivalentes para as ideias delirantes de mesmo conteúdo. O agente perseguidor — ao qual ele não podia se subtrair, a não ser com grande ansiedade [anxiété|Angst] — era, via de regra, um touro pujante ou algum outro símbolo da virilidade, que muitas vezes, ademais, ele reconhece, no próprio decorrer do sonho, como uma forma de substituição do pai. Uma vez relatou, em tom paranoico, um sonho de transferência muito característico. Ele viu que, em sua companhia, eu me barbeava; e observou, pelo odor, que eu me utilizava do mesmo sabonete que seu pai. Eu estaria agindo assim para obrigá-lo à transferência do pai para a minha pessoa. Na escolha da situação sonhada mostra-se, de forma impossível de ignorar, o pouco caso que o paciente faz de suas fantasias paranoicas e o pouco crédito que a elas atribui; pois uma observação cotidiana podia instrui-lo quanto ao fato de que, em geral, não é o caso de eu (398) me utilizar de sabonete de barbear, e que assim, nesse ponto, eu não oferecia apoio algum à transferência paterna.

Mas a comparação dos sonhos nos dois pacientes nos ensina que a questão por nós levantada — a saber, se a paranoia (ou toda e qualquer outra psiconeurose) podia penetrar até mesmo no sonho — repousa apenas em uma concepção incorreta do sonho. O sonho distingue-se do pensamento de vigília por poder acolher conteúdos (do domínio recalcado) que não têm o direito de se apresentar no pensamento de vigília. À parte isso, ele não passa de uma forma do pensamento, uma transformação da matéria pensável da pré-consciência, pelo trabalho do sonho e suas determinações. Ao próprio recalcado a nossa terminologia das neuroses não se aplica; não se pode qualificá-lo nem como histérico, nem como obsessivo, nem como paranoico. É, ao contrário, a outra parte da matéria submetida à elaboração do sonho; são os pensamentos pré-conscientes que podem ou ser normais, ou carregar em si o caráter de uma neurose qualquer. Os pensamentos pré-conscientes têm chances de ser resultados de todos esses processos patógenos em que reconhecemos a essência de uma neurose. Não se vê por que cada uma dessas ideias mórbidas não deveria sofrer a transformação em um sonho. Sem ir muito longe, um sonho pode também nascer de uma fantasia histérica, de uma representação [représentation|Vorstellung] obsessiva, de uma ideia [idée|Idee] delirante — quero dizer: apresentar, em sua interpretação, tais elementos. Em nossa observação de dois paranoicos, deparamo-nos com o fato de que o sonho de um é normal, enquanto o homem está em acesso; e que o do outro tem um conteúdo paranoico, quando o sujeito, ainda por cima, zomba de suas ideias delirantes. Assim, nos dois casos, o sonho acolhe aquilo que é, ao mesmo tempo, reprimido [réprimé|zurückgedrängt][32] quando da vida de vigília. Em tempo, isso não é necessariamente a regra.

| A homossexualidade – O reconhecimento do fator orgânico da homossexualidade não nos exime de estudar os processos psíquicos que estão na sua origem. O processo típico, bem estabelecido em inúmeros casos, consiste no fato de que, no jovem, até então intensamente fixado à sua mãe, produz-se, alguns anos após o decorrer da puberdade, uma crise [crise|Wendung];[33] ele próprio se identifica com a mãe e procura, para o seu amor, objetos em que possa encontrar a si mesmo e que ele tenha a oportunidade de amar como a sua mãe o amou. Como vestígio desse processo, usualmente uma condição de atração se impõe por vários anos ao sujeito: que os objetos (399) masculinos tenham a idade em que, para ele, a reviravolta [bouleversementUmwandlung][34] se deu. Aprendemos a conhecer os diversos fatores que, com uma força variável, provavelmente contribuem para esse resultado. Antes de mais nada, a fixação à mãe que entrava a passagem a um outro objeto feminino. A identificação à mãe permite sair dos laços [liens|Bindung][35] com ela, ao mesmo tempo que abre a possibilidade de permanecer fiel, em certo sentido, a esse primeiro objeto. Em seguida vem a tendência [tendance|Neigung][36] à escolha narcísica do objeto, que, de uma forma geral, é mais imediata e mais fácil de realizar que a conversão [conversion|Wendung][37] em direção ao outro sexo. Detrás dessa instância dissimula-se uma outra, de uma força totalmente particular; ou quiçá ela coincida com a primeira: o alto valor agregado ao órgão masculino e a impossibilidade de renunciar àquilo que existe no objeto amado. O desdém pela mulher, a aversão por ela (até mesmo o asco [dégoût|Abscheu] que ela provoca) relacionam-se, via de regra, com a descoberta — feita logo cedo — de que a mulher não possui pênis. Mais tarde descobrimos também, como um potente mote de uma escolha homossexual do objeto, a consideração pelo pai ou a angústia [angoisse|Angst][38] experimentada em relação a ele, quando a renúncia à mulher significa que assim se esquiva da concorrência com ele (ou com todas as pessoas do sexo masculino que desempenhem o seu papel). Esses dois últimos motes — o aferramento à condição peniana, assim como a evitação — podem ser atribuídos ao complexo de castração. Apego à mãe — narcisismo —, angústia [angoisse|Angst] de castração: instâncias — aliás, nada específicas — que localizamos até então na etiologia psíquica da homossexualidade. A isso associam-se ainda a influência de uma sedução, que pode responder por uma fixação precoce da libido, bem como a do fator orgânico, que favorece o papel passivo na vida amorosa.

Mas nós nunca acreditamos que essa análise da origem da homossexualidade fosse completa. Hoje estou em condições de indicar um novo mecanismo que leva à escolha homossexual do objeto, ainda que eu não possa precisar em que amplitude é preciso fixar o seu papel na constituição da homossexualidade extrema, daquela que é manifesta e exclusiva. A observação fez-me atentar para vários casos em que, na primeira infância, tendências [tendances|Regungen] ciumentas de uma força singular, oriundas do complexo materno, ergueram-se contra rivais, o mais frequentemente contra irmãos mais velhos. Esse ciúme levava a atitudes intensamente hostis e agressivas para com o grupo dos irmãos, atitudes que puderam chegar até (400) ao voto mortífero [voeu meurtrier|Todeswunsch],[39] mas não resistiram à ação do desenvolvimento. Sob a influência da educação — e também, certamente, em consequência do fracasso a que lhes fadava a impotência —, essas tendências acabavam recalcadas, invertendo-se[40] o sentimento, de modo que os precoces rivais eram agora os primeiros objetos homossexuais. Uma saída como essa do apego à mãe nos mostra relações [rapports|Beziehungen] — interessantes em mais de um ponto — com outros processos que nos são conhecidos. Ela é, primeiramente, a contraparte do desenvolvimento da paranoia persecutoria, na qual as pessoas primordialmente amadas tornam-se odiados perseguidores, ao passo que aqui os rivais odiados revelam-se objetos de amor. Além disso, ela figura uma exageração do processo que, da minha perspectiva, conduz à gênese individual dos instintos [instincts|Triebe] sociais.[41] Em ambos os casos existem, primeiramente, tendências [tendances|Regungen] invejosas e hostis que não conseguem encontrar satisfação, e os sentimentos de identificação — tanto de natureza amorosa quanto social — nascem como formas de reação contra os impulsos [impulsions|Impulse] agressivos recalcados.

Esse novo mecanismo da escolha homossexual do objeto, que brota da rivalidade superada [surmontée|überwundene] e do recalcamento das tendências [tendances|Neigung] agressivas,[42] acaba se misturando, em muitos casos, às determinações típicas que conhecemos. Não raro ficamos sabendo, pela história de vida dos homossexuais, que a viravolta [tournant|Wendung] ocorreu após a mãe ter elogiado outra criança, dando-a como exemplo. Eis aí o que despertou a tendência [tendance|Tendenz] à escolha narcísica do objeto e, depois de uma curta fase de ciúme agudo, transformou o rival em objeto amado. Aliás, o novo mecanismo distingue-se pelo fato de que, nesses casos, a transformação [transformation|Umwandlung] se produz no decorrer de anos bem mais precoces e que a identificação com a mãe passa para segundo plano. De igual modo, nos casos que observei, levou apenas a atitudes homossexuais que não excluíam a heterossexualidade e não acarretavam nenhum horror feminae.[43]

É bem conhecido o fato de que um número bastante grande de pessoas homossexuais caracteriza-se por um desenvolvimento particular dos instintos [instincts|Triebe] de tendência social[44] e por sua dedicação a interesses de utilidade pública. Ficar-se-ia tentado a oferecer a explicação teórica de que um homem que vê nos outros homens virtuais objetos de amor deve se comportar diferentemente quanto à (401) comunidade dos homens, se comparado a um outro que é forçado a encarar o homem primeiramente como rival em relação à mulher. Uma única consideração opõe-se a isso: é que no amor homossexual também há rivalidade e ciúme,[45] e que a comunidade dos homens compreende também esses possíveis rivais. Mas, abstendo-se dessa motivação especulativa, não é indiferente para as relações [rapports|Zusammenhang][46] da homossexualidade e do senso [sens|Empfinden] social o fato de que, efetivamente, não seja raro ver nascer a escolha homossexual do objeto de um domínio [maîtrise|Überwindung][47] precoce da rivalidade para com o homem.

Na concepção psicanalítica estamos habituados a conceber os sentimentos sociais como sublimações de comportamentos homossexuais quanto ao seu objeto. Para os homossexuais dotados de senso social, os sentimentos sociais não teriam operado o seu desprendimento da escolha primitiva[48] do objeto com integral felicidade.


INFORMAÇÕES ADICIONAIS | Em português brasileiro, o texto de Freud encontra-se traduzido diretamente do alemão nos seguintes volumes: S. Freud, Obras incompletas, vol. 5: “Neurose, psicose, perversão”. Trad. M. R. Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, pp. 193-216; S. Freud, Obras completas, vol. 15: “Psicologia das massas e análise do eu e outros textos”. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 209-224.



[1] Trauer, aqui traduzido por tristesse [tristeza] em todas as suas ocorrências, para além de uma dor diante de uma perda ou infortúnio — na chave do pesar e da consternação —, denota o tempo de profunda infelicidade que se segue à morte de alguém. É o termo utilizado por Freud em seu ensaio “Luto e melancolia” [Trauer und Melancholie], escrito em 1915 e publicado em 1917. (N. do T.)

[2] A expressão “do sujeito” [du sujet] não consta no original alemão. (N. do T.)

[3] Beziehung denota relacionamento, laço, relação. (N. do T.)

[4] Em tempo, um pequeno anacronismo: futuramente, na tentativa de especificar a “relação sexual”, Lacan irá se valer, para tanto, do termo Verhältnis — o qual, em sua acepção matemática, diz respeito à relação enquanto proporção, razão. Em francês, esse termo será associado por ele à palavra rapport, ao passo que relation será vinculado a Beziehung. (N. do T.)

[5] Para além de tendance, vale lembrar que Regung também é traduzido em francês pelo termo motion [moção]. (N. do T.)

[6] No original alemão, “ou” [oder], e não “e” [und]. (N. do T.)

[7] No original, Freud se vale apenas do termo Hilflosigkeit [desamparo], que Lacan traduz pela perífrase être privé de tout recours [estar privado de todo e qualquer recurso]. (N. do T.)

[8] No original alemão, “de projeção” está escrito com espaçamento entre as letras (dito Sperrdruck) —forma de destaque vertida pelo itálico tanto pela tradução francesa quanto por esta tradução brasileira. (N. do T.)

[9] A expressão “do sujeito” [du sujet] não consta no original alemão. (N. do T.)

[10] Ao pé da letra, “material perceptivo”. O termo “imediatos” [immédiates] não consta no original alemão. (N. do T.)

[11] Comparar com esta estrofe do canto de Desdêmona: “Chamei de enganador ? (sic) E ele disse o quê ? Se eu olho a moça, tu fitas o garoto” [Freud traz o verso de Shakespeare (Otelo, ato IV, cena 3) em inglês, com ligeiras modificações em relação ao texto original: “I called him thou false one, what answered he then? / If I court more women, you will couch with more men”, que traduzimos por “Chamei-o de falso, e o que respondeu? Se deitas com outros, c’outras flerto eu”]. (N. do T.)

[12] Neigung é “inclinação”, “caimento” — daí a ideia de tendência. (N. do T.)

[13] A expressão “do sujeito” [du sujet] não consta no original alemão, assim como o parágrafo não termina aqui: ele continua com o que, na tradução, é o parágrafo seguinte. (N. do T.)

[14] No original alemão, “delirante” [wahnhaft] está escrito com espaçamento entre as letras. (N. do T.)

[15] Freud não utiliza aspas no original. (N. do T.)

[16] No original alemão, “eu” [Ich] está escrito com espaçamento entre as letras. (N. do T.)

[17] Aproximar dos desenvolvimentos do caso Schreber: “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [dementia paranoides]” [Lacan cita a tradução francesa, realizada por Marie Bonaparte e R. Loewenstein, publicada na Revue française de Psychanalyse, vol. V, n. 1. (N. do T.)]

[18] Cumpre lembrar que Freud havia escrito seu texto Das Unheimliche [O incômodo] em 1919, dialogando com o ensaio “Psicologia do incômodo” [Zur Psychologie des Unheimlichen], de Ersnt Jentsch (1906), explorando ali justamente a ideia de que: “o tradicional, habitual e ancestral é amado e digno de confiança para a maioria das pessoas; e que elas recebem o novo e o inabitual com desconfiança, desconforto e até hostilidade (misoneísmo). Isso é em grande parte esclarecido pela dificuldade em estabelecer, rápida e plenamente, as conexões de ideias que o objeto se esforça por fazer com o campo representacional anterior do indivíduo — ou seja, o domínio do intelecto sobre a coisa nova. […] Logo, é compreensível que à vinculação ‘antigo-conhecido-familiar’ corresponda o correlato ‘novo-estranho-hostil’”. (N. do T.)

[19] Lacan traduz por conduite [conduta] tanto Benehmen (no início do texto) quanto Verhalten. Cumpre notar, no entanto, que Benehmen é mais próximo da ideia de “modos” e “maneiras”, atribuíveis a seres animados, ao passo que Verhalten pode ser atribuído a objetos: por exemplo, quando dizemos que “o motor se comporta bem na estrada”. (N. do T.)

[20] Lacan cria um paralelismo, que não existe no original alemão, com a expressão “ar ambiente” — por ele utilizada um pouco antes para verter o Luft freudiano. Aqui Freud utiliza Blaue, que poderia ser traduzido por “escuro” — como em “um tiro no escuro” [ein Schuss ins Blaue] — ou “vazio”. (N. do T.)

[21] No original alemão, singular. (N. do T.)

[22] Em latim no original e na tradução. (N. do T.)

[23] Lacan cria um paralelismo, que não existe no original freudiano, com “queridinho confesso” — expressão por ele utilizada no parágrafo anterior para verter o erklärt [declarado] freudiano. Aqui Freud utiliza ausgesprochenst, que poderia ser traduzido, entre outros, por “o mais declarado”. (N. do T.)

[24] O termo “afetivo” [affectif] não consta no original alemão. (N. do T.)

[25] O termo “afetado” [affecté] não consta no original alemão. (N. do T.)

[26] Literalmente, “vida anímica”, e não psíquica [psychisches Leben]. (N. do T.)

[27] No original alemão, Freud se vale do termo pathogene, traduzido por Lacan como pathogène [patógeno] em todas as ocorrências, exceto nessa, em que ele opta pelo termo morbifique. (N. do T.)

[28] “Revolução” no sentido físico do termo: movimento circular ou elíptico no qual um corpo retorna à sua posição inicial. (N. do T.)

[29] Aqui Freud repete o termo “superinvestimento” [Überbesetzung], que Lacan opta por traduzir por surcharge, e não surinvestissement, como nas demais ocorrências. (N. do T.)

[30] Cf. Eugen Bleuler (1921) “Die Schaltungen”. In: Naturgeschichte der Seele und Ihres Bewusstwerdens: Eine Elementarpsychologie. Berlin/Heidelberg: Springer-Verlag, pp. 287-306. (N. do T.)

[31] Aqui Freud repete o termo “superinvestimento” [Überbesetzung], que Lacan opta por traduzir por surcharge, e não surinvestissement, como nas demais ocorrências. (N. do T.)

[32] O verbo zurückdrängen carrega a ideia de “empurrar de volta”, “repelir”. (N. do T.)

[33] Wendung denota “volta”, “virada”. A seguir, em outra ocorrência do termo, Lacan opta por traduzi-lo por “conversão”. (N. do T.)

[34] O termo Umwandlung, que pode ser traduzido como “conversão”, associa-se às ideias de modificação, transformação, reestruturação — como, por exemplo, “a conversão da luz solar em eletricidade” [die Umwandlung von Sonnenlicht in Elektrizität]. (N. do T.)

[35] No original alemão, singular. (N. do T.)

[36] Não está escrito com espaçamento entre as letras no original em alemão. (N. do T.)

[37] Cumpre notar que não se trata do conceito de “conversão” enquanto associado à histeria, para o qual Freud emprega o equivalente latino do termo germânico Umwandlung [conversão], a saber: Konversion (como em Konversionshysterie, “histeria de conversão”). (N. do T.)

[38] Cumpre notar que Angst — aqui traduzido por Lacan ora como “ansiedade”, ora como “angústia” — é também “medo”. (N. do T.)

[39] Literalmente, “desejo de morte”. (N. do T.)

[40] Freud torna a utilizar aqui o termo Umwandlung. (N. do T.)

[41] Ver “Psicologia das massas e análise do eu”, 1921 [Vol. VI das Obras completas ].

[42] No original alemão, singular. (N. do T.)

[43] Em latim no original e na tradução, a expressão significa “ginofobia” — literalmente, “horror à mulher”. (N. do T.)

[44] A construção freudiana é um pouco diferente: durch besondere Entwicklung der sozialen Triebregungen [por um desenvolvimento particular das moções pulsionais sociais] — ou “das tendências instintuais sociais”, seguindo as opções de tradução feitas por Lacan ao longo deste texto. (N. do T.)

[45] No original alemão os termos aparecem em posições invertidas: “ciúme e rivalidade” [Eifersucht und Rivalität]. (N. do T.)

[46] No original alemão, singular. (N. do T.)

[47] Na tradução de Lacan perde-se o paralelismo, presente no original freudiano, entre a “rivalidade superada” do parágrafo anterior e, aqui, a “superação precoce da rivalidade”. (N. do T.)

[48] O termo “primitiva” [primitif] não consta no original alemão. (N. do T.)