terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Dessa forma, Kafka nos lembra como compreender o poder é uma questão de compreender seus modos de construção de corpos políticos, seus circuitos de afetos com regimes extensivos de implicação, assim como compreender o modelo de individualização que tais corpos produzem, a forma como ele nos implica. Se quisermos mudá-lo, será necessário começar por se perguntar como podemos ser afetados de outra forma, será necessário estar disposto a ser individualizado de outra maneira, a forçar a produção de outros circuitos.

Safatle, Vladimir. O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo . Autêntica Editora. Kindle Edition.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Intervenção se Paul B. Preciado nas Jornadas da Escola da Causa Freudiana

Tradução da corajosa e acachapante intervenção se Paul B. Preciado nas Jornadas da Escola da Causa Freudiana. Está mais do que na hora de resgatar o caráter mutante da psicanálise!!!

Tradução: Mila Kushnir

“Bom dia, queridas damas, queridos cavalheiros, da Escola de psicanálise da França, damas e cavalheiros da Escola da Causa Freudiana, e não sei se vale a pena que se diga também bom dia a todos aqueles que não são nem damas nem cavalheiros, porque creio que não há entre vocês alguém que haja renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista (...), depois de haver conseguido exitosamente o passe. Falo aqui de um psicanalista trans ou não binário que tenha sido admitido entre vocês. Se existe, permitam-me enviar a esse mutante, imediatamente, a saudação mais calorosa.

[Fala em espanhol] Também quero saudar aqui a todos os psicanalistas hispanofalantes da América Latina e da Espanha. Senhoras, senhores, e sobretudo todos os outros, aqueles que não são senhoras, nem senhores.

[Retorno à fala em francês] Em 1917, Franz Kafka escreveu Um relatório para uma Academia. O narrador do texto é um macaco que, depois de ter aprendido as linguagens humanas, se apresenta frente a uma Academia das mais altas autoridades científicas para explicar-lhes o que a evolução humana havia representado para ele.

O macaco, que se chama Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma expedição de caça organizada pelo circo Hagenbeck, como foi em seguida transportado a Europa e como logo conseguiu converter-se em um homem. Pedro Vermelho conta como aprendeu as linguagens humanas e como, para fazê-lo, e entrar na sociedade da Europa de seu tempo, teve que esquecer sua vida de macaco e tornar-se alcóolatra.

Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro Vermelho, é que Kafka não apresenta sua história de humanização como uma história de liberação, mas sim como uma crítica do humanismo europeu.

Uma vez capturados, os macacos, dizem que não havia outra opção, mas que, ou bem morriam em uma jaula, ou bem viviam passando à jaula da subjetividade humana; e é, a partir desta nova jaula da humanidade, que se dirige à Academia científica.

Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de científicos, me dirijo hoje a vocês, acadêmicos de psicanálise, desde minha jaula de homem transexual. Meu corpo, marcado pelo discurso médico e jurídico como transexual, caracterizado na maior parte de vossos diagnósticos psicanalíticos como sujeito de metamorfose impossível, segundo vosso colega Pierre-Henri Castel; estando, segundo a maior parte de suas teorias, mais além da neurose, na borda ou inclusive no interior da psicose; tendo, segundo vocês, uma incapacidade de resolver corretamente um complexo de Édipo, ou havendo sucumbido à inveja do pênis. Me dirijo a vocês, como um macaco humano de uma nova era.

Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário, ao que nem a medicina, nem o direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar nem a possibilidade de produzir um discurso uniforme de conhecimento sobre eu mesmo; aprendi como Pedro Vermelho, a linguagem do patriarcado colonial, vossa língua. Estou aqui para dirigir-me a vocês.

Dirão que recorro a um conto kafkiano para começar a falar-lhes, mas vosso colóquio me parece mais próximo da época do autor de “A metamorfose” que da nossa.

Vocês organizam um encontro para falar das mulheres na psicanálise em 2019 como se todavia estivéssemos em 1917, e como se esse tipo particular de animal, que vocês chamam de forma condescendente e naturalizada “mulher”, não tivesse sempre um reconhecimento pleno enquanto sujeito político; como se ela fosse um anexo ou uma nota em pé de página, uma criatura estranha e exótica entre as flores, sobre a qual há que pensar de tanto em tanto, em um colóquio em mesa redonda. Pois bem, haveria que organizar um encontro sobre homens brancos heterossexuais e burgueses, em psicanálise.

O discurso psicanalítico gira em torno do poder discursivo e político desse tipo de animal necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano universal, e que é, ao menos até o presente, o sujeito da enunciação central no discurso das instituições psicanalíticas da modernidade colonial.

Não tenho, já verão, grande coisa que dizer sobre as mulheres em psicanálise, mas que eu também sou, como Pedro Vermelho, um fugitivo, que eu também fui, um dia, uma mulher em psicanálise; que me atribuíram um sexo feminino, e como o macaco mutante, também saí dessa jaula apertada, talvez para entrar em outra jaula; mas ao menos, dessa vez, por meus próprios pés.

Falo-lhes, hoje, desde essa jaula elegida e desenhada, do homem trans, do corpo de gênero não binário. Uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens ou das mulheres, porque ao menos reconhece seu estatuto de jaula.

Queria transmitir-lhes hoje ao menos três ideias, se vocês me permitem. Com a estranha liberdade de falar-lhes desde uma posição discursiva impossível; pois enquanto está em trânsito, enquanto corpo de gênero não binário, mutante de uma humanidade binária e colonial que vocês representam, consagrei toda minha vida a estudar os diferentes tipos de jaulas onde os humanos se prendem.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer-lhes que o regime da diferença sexual, com o qual trabalha a psicanálise, não é nem uma natureza nem uma ordem simbólica, mas uma epistemologia política do corpo, e, como tal, é histórica e mutável.

Em segundo lugar, queria informar-lhes, no caso de que não o saibam, que esta epistemologia binária e hierárquica está em crise a partir de 1940. Não somente por causa da resposta exercida pelos movimentos políticas de minorias dissidentes, mas também pela aparição de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos, que tornam impossível a atribuição sexual binária.

Em terceiro lugar, gostaria de dizer-lhes que, agitada por estas profundas mudanças, a epistemologia da diferença sexual está em mutação, e vai ceder lugar, provavelmente durante os próximos dez ou vinte anos, a uma nova epistemologia.

O movimento trans-feminista, queer, de denúncia da violência hétero-patriarcal, mas também as novas práticas de filiação, de relação amorosa, de identificação de gênero, do desejo, da sexualidade, da nomeação, não são mais que indícios dessa mutação.

De cara com essa transformação epistemológica em curso vocês tenderão a dizer, senhoras e senhores psicanalistas da França, da América Latina, da Europa, do mundo. O que vão ter que dizer é o que vão fazer: Onde vão se localizar? Em que jaula querem estar/ser [être] presos? Como vão jogar suas cartas discursivas e clínicas, em um processo tão importante como este?

E mais, lhes peço alguns minutos de atenção, se vocês podem ainda, escutar ainda, o gênero não binário, e conceder-lhe um potencial de razão e de verdade.

Em primeiro lugar, senhoras e senhores e outros, o regime da diferença sexual que vocês conhecem e consideram como universal, e quase metafísico, sobre os que se apoiam e se articulam em todas as teorias psicanalíticas, não é uma realidade empírica nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. Não é mais uma epistemologia do vivente, uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva desta energia reprodutiva.

Se trata de uma epistemologia histórica que se constrói em relação a uma taxonomia racial, tanto como do desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na segunda metade do século XIX.

Esta epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma máquina performativa que produz e legitima uma ordem política e econômica específica: o patriarcado hétero-colonial. Antes do século XIX, o corpo e a subjetividade feminina não eram reconhecidos como sujeitos políticos. A mulher e as mulheres não existiam nem anatomicamente, nem politicamente, como subjetividade soberana antes do século XIX.

No regime patriarcal, anterior ao século XIX, somente o corpo masculino e a sexualidade masculina eram reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a sexualidade eram subalternos, dependentes e minoritários.

É interessante pensar que a psicanálise freudiana, como teoria do aparato psíquico, como prática clínica, aparece precisamente no momento onde se cristalizam as noções centrais da epistemologia da diferença sexual: o homem e a mulher definidos como anatomicamente diferentes e complementares por sua potência reprodutiva, como figuras potencialmente paternais e maternais, respectivamente, na instituição familiar, colonial, burguesa; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade pensadas como normal e patológica, respectivamente.

A psicanálise, vista desde o ângulo da história do corpo abjeto, da história do monstro da sexualidade normativa, e a ciência do inconsciente, patriarcal e colonial. Lhes peço, por favor, não tentar negar a complexidade... perdão, a cumplicidade... e a complexidade, as duas, se vocês querem... a complexidade, assim como a cumplicidade, da psicanálise com a epistemologia da diferença sexual heteronormativa. Lhes ofereço a possibilidade de uma terapia política de vossa instituição. [aplausos]

Obrigado.

Mas esse processo não pode fazer-se sem uma análise exaustiva destes pressupostos. Não os refoulent pas, não os neguem, não os reprimam, não os desloquem. Não me digam que a diferença sexual não é crucial na experiência da estrutura do aparato psíquico em psicanálise.

Todo o edifício freudiano está pensado a partir da posição da masculinidade patriarcal do corpo masculino, heterossexual, entendido como um pênis eréctil, penetrante e ejaculatório. É por isso que as mulheres em psicanálise, esses animais estranhos entre as flores, com útero reprodutor e clitóris, são sempre e, todavia, um problema. É por isso que vocês têm a necessidade, todavia, no início do século XIX, de uma jornada para falar das mulheres em psicanálise. [aplausos]

Mas não me digam que a instituição psicanalítica não tem considerado, e não considera ainda, a homossexualidade como um desvio em relação à norma. Do contrário, como explicar que até faz muito pouco tempo não haviam psicanalistas podendo publicamente identificar-se como homossexuais? Lhes pergunto: quantos de vocês se definem hoje, inclusive aqui mesmo, nesta Escola da Causa Freudiana, publicamente, como psicanalista homossexual? [silêncio... seguido de aplausos]

Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos]... de qualquer maneira, vejo que vocês não o fazem [risos], talvez não sirva, não sirva para nada.

O que lhes peço é o reconhecimento de uma posição de enunciação política, em um regime de poder hétero-patriarcal e colonial.

Contrariamente a o que pensa a psicanálise, não creio que a heterossexualidade seja uma prática sexual ou uma identidade sexual. Penso que é sim um regime político que tem reduzido a totalidade do corpo humano, vivente, e sua energia psíquica, a um potencial reprodutivo; uma posição de poder discursiva e institucional.

Os psicanalistas são epistemologicamente e politicamente ainda binários e heterossexuais, até que o contrário seja dito ou denunciado. E temos tido hoje aqui uma prova.

Eu não peço aos psicanalistas homossexuais para sair do armário – inclusive se pensa que isso te faria bem [risos] -; são os psicanalistas heterossexuais em vocês, a totalidade desta sala, os que devem sair urgentemente do armário da norma.

A psicanálise freudiana começou a funcionar desde finais do século XIX, como uma tecnologia de gestão do aparato psíquico, encerrada na epistemologia patriarcal, colonial, da diferença sexual. Não há tentativa na psicanálise freudiana de superar esta epistemologia, mas sim de inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas discursivas e terapêuticas que permitam normalizar as posições de homens e mulheres, e suas identificações sexuais e coloniais dominantes (...).

Nesta epistemologia hegemônica os sujeitos patriarcais, coloniais, modernos, utilizam a maior parte de sua energia psíquica para produzir solidariedade normativa. Angústia, alucinação, melancolia, depressão, dissociação, opacidade, repetição, não são mais que os custos gerados para a manutenção desta epistemologia normativa. A psicologia não é uma crítica desta epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária para que o sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos psíquicos enormes da violência indescritível deste regime. Mas esta epistemologia da diferença sexual, com a qual a psicanálise freudiana trabalha, mais além da crítica, lhes digo, tem entrado em crise depois da segunda guerra mundial. E pode ser – não estou seguro disso – se vocês são totalmente conscientes que esta epistemologia da diferença sexual, com a qual vocês continuam trabalhando, está hoje em crise. Está em uma profunda crise desde os anos 40.

A politização de subjetividades, de corpos considerados como abjetos nesta epistemologia, a organização de movimentos de luta pela soberania reprodutiva e política do corpo das mulheres e pela des-patologização da homossexualidade, como também a invenção de novas técnicas de representação de estruturas bioquímicas da vida, vai conduzir a uma situação sem precedentes depois dos anos 40. Os discursos médicos e psiquiátricos parecem ter cada vez mais dificuldades, desde os anos 40 do último século, para enfrentar a aparição de corpos nos quais não se pode imediatamente atribuir um sexo feminino ou masculino no nascimento.

Com as novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas, e a expansão da medicalização do parto, cada vez mais bebês, antes chamados hermafroditas, aparecem. De cara para estes bebês, a comunidade científica-médica inventou uma nova taxonomia. O psiquiatra de crianças John Money, trabalhando na Universidade John Hopkins de Nova Iorque, deixa de lado a noção moderna de sexo, como realidade anatômica, e inventa a noção de gênero, para falar da possibilidade de produzir tecnicamente a diferença sexual. As noções de intersexualidade, transexualidade, aparecem também entre 1947 e 1960. Pela primeira vez, a medicina e a psiquiatria realizam com esforço a existência de uma multiplicidade de corpos e de posições sexuais mais além do binário. Mas, no lugar de mudar a epistemologia, a instituição médica, psiquiátrica, psicológica, decide modificar os corpos, normalizar a sexualidade, retificar as identificações.

Queria compartir, hoje, com vocês, a hipótese segundo a qual toda a psicanálise lacaniana, que nasce precisamente depois dos anos 40, sua re-leitura de Freud, seu rodeio pela linguística, é já uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. Creio que é possível dizer que Lacan tentou, como John Money, des-naturalizar a diferença sexual; mas, como John Money, terminou por produzir um meta-sistema que é quase mais rígido que a noção moderna de sexo e diferença anatômica. No caso de John Money este meta-sistema introduz a gramática do gênero, pensada como construção social e endocrinológica. Em Lacan, este meta-sistema – e vocês sabem muito melhor que eu – não é tampouco anatômico, mas sim aquele do inconsciente estruturado como linguagem, mas, como no caso de John Money, se trata de um sistema de diferenças que não escapa – desafortunadamente – ao binarismo sexual e a genealogia patriarcal do nome.

Minha hipótese é que Lacan não conseguiu des-fazer-se do binarismo sexual, por conta de sua filiação/apego político ao patriarcado heterossexual. Essa des-naturalização está conceitualmente em marcha; ele mesmo, não estava pronto.

A partir de 1960, com a comercialização da pílula anticoncepcional, depois com a des-patologização da homossexualidade, a epistemologia da diferença sexual entra no processo de questionamento e de mutação incontrolável. Hoje sabemos que um bebê a cada quatrocentos é identificado como intersexual. Não pode ser reconhecido nos gêneros ordinários. No curso dos último vinte anos, as crianças que têm sido operadas ou tratadas como intersexual, tem se organizado para pedir o fim da mutilação genital e os processos de reatribuição forçada. Ao mesmo tempo, que cada vez mais corpos começam a identificar-se como não-binários. De modo diferente nos Estados Unidos, mas também na Argentina, como vocês sabem, ou na Austrália, se reconhece hoje os gêneros não binários como uma possibilidade política.

Tenho o prazer também de contar a vocês que tem apenas umas semanas, minha amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no registro de estado civil da Califórnia como pessoa de gênero não binário. As identificações de heterossexualidade, homossexualidade, pensadas em relação com a capacidade reprodutiva dos corpos de sexo oposto, parecem cada vez mais obsoletas, de cara com a multiplicidade de técnicas de gestão da procriação assistida. Não somente a pílula anticoncepcional ou a pílula do dia seguinte, mas também a paternidade transexual, (...), gestação por outro, externalização do útero, etc.

A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação. Assistimos a um processo de transformação na ordem da anatomia política e sexual, comparável àquele que levou a passagem da epistemologia geocêntrica à epistemologia heliocêntrica copernicana entre 1510 e 1730.

Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente uma epistemologia capaz de dar conta da multiplicidade de viventes, que não reduza os corpos a sua força reprodutora heterossexual, e que não legitime a violência hétero-patriarcal e colonial.

Quando falo de uma nova epistemologia me refiro a começar um processo de ampliação radical do horizonte democrático, para reconhecer como sujeitos políticos todo corpo humano vivo, sem que a atribuição sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade deste reconhecimento, social ou político.

Vivemos um momento – gostaria transmitir-lhes isso hoje – de uma importância histórica sem precedentes. A violência epistemológica da diferença sexual posta em questão pelo movimento feminista, homossexual, intersexual, transexual, queer, e apoiado igualmente pela confrontação de novos dados científicos, está em trânsito de mudar. Estes processos de mudança deste paradigma científico e político conduzirão ao reconhecimento, enquanto sujeitos políticos soberanos, de todo um conjunto de corpos que até agora haviam sido marcados como politicamente subalternos.

Neste contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da academia de psicanálise da França, e da École de la Cause Freudienne, vocês têm uma enorme responsabilidade. Vocês têm... e têm que saber... de que lado querem colocar-se. Se querem permanecer do lado deste discurso patriarcal e colonial, e re-afirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução sexual, heterossexual; ou entrar, conosco, os mutantes deste mundo, em um processo crítico de invenção de outras formas de subjetividade política. [aplausos]

Vocês não podem recorrer – já termino... vocês não podem recorrer a cada vez aos textos de Freud e de Lacan como se estes tivessem um valor universal, não situado historicamente; como se este texto não tivesse sido escrito no interior deste epistemologia patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e de Lacan a lei é também absurdo, como pedir a Galileu que retornasse aos textos de Ptolomeo ou a Einstein para seguir pensando desde a física de Aristóteles.

Hoje os corpos, outras vezes excluídos do regime da diferença sexual, falam e produzem um saber sobre eles mesmos. Os movimentos transfeministas, me too, nem uma a menos, operam uma transformação crucial.

Vocês não podem seguir falando do complexo de Édipo ou do Nome-do-Pai em uma sociedade onde as mulheres são objeto de feminicídios, onde as vítimas da violência patriarcal se expressam por denunciar a seus pais, maridos, chefes, namorados; onde as mulheres denunciam a política institucionalizada de violação; ou onde milhões de corpos descem às ruas para denunciar agressões homofóbicas, e as mortes, quase cotidianas, de mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo.

Não podem mais seguir afirmando a universalidade da diferença sexual e a estabilidade das identificações heterossexuais e homossexuais em uma sociedade onde é legal mudar de sexo, onde podemos identificar-nos, como pessoas de gênero não binárias; em uma sociedade onde há já milhões de crianças nascidas de famílias não heterossexuais e não binárias.

Continuar praticando a psicanálise, utilizando a noção de diferença sexual e com instrumentos críticos como o complexo de Édipo seria hoje tão aberrante como pretender continuar navegando no universo com um mapa geocêntrico ptolemaico ou controlar as mudanças climáticas, ou afirmar que a Terra é plana. [aplausos]

Hoje... – sim, já sei, já termino -...; hoje meus queridos amigos psicanalistas, é mais importante escutar os corpos excluídos pelo regime patriarcal colonial, que reler Freud e Lacan. Não se refugiem nos pais da psicanálise. Vossa obrigação política é cuidar das crianças, não a de legitimar a violência dos pais.

É chegado o momento de colocar o divã na praça e de coletivizar a palavra, de politizar o inconsciente.

Nos enfrentamos com uma nova aliança necropolítica do patriarcado colonial e de novas tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida nenhuma, já estamos enfrentando uma nova farmacolonização crescente, (...), uma mercantilização da indústria do cuidado.

[Sussurros... o chamam: “Paul”]

Sim, penso que é necessário que pare.

[Risos, aplausos]

A última coisa. Creio que a tarefa que nos resta por fazer é começar um processo de des-patriarcalização, des-heterossexualização e de-colonização da psicanálise. [Aplausos] (...) uma psicanálise mutante ao redor desta mutação de paradigma. Talvez somente este processo de transformação, por mais terrível e desmantelador que pareça, mereça hoje, de novo, chamar-se psicanálise.”
Paul B. Preciado

Intervenção nas Jornada n. 49 da Escola da Causa Freudiana (École de la Cause Freudienne)
Tema: Mulheres em Psicanálise – 17 de novembro de 2019



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Resposta à intervenção de Paul B. Preciado na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana
Jean- Claude Maleval

Um longo comentário criticando a psicanálise, acusada de obsolescência, nunca havia ressoado na tribuna de um congresso de uma escola de Lacan antes do dia 17 de novembro de 2019. Não podemos duvidar que a diatribe de Paul B. Preciado vem testemunhar uma nova conjectura histórica.
Ele rejeita a binaridade dos sexos, considerada patriarcal, em nome de um construtivismo do gênero, que supostamente estaria mais comprometido com a modernidade. Ele ignora que a abordagem lacaniana da sexuação não é essencialista. Ela se afirma tão construtivista quanto a sua abordagem: não consideramos que o devir sexual seja determinado pela fisiologia (1). Existem fortes identificações contrárias ao sexo biológico entre os neuróticos. E existem suplências que passam pela transexualização.

No entanto, segundo Lacan, a escolha do sexo não está aberta à infinita diversidade de gêneros. Ele a concebe como sendo determinada por uma fixação de gozo em um sintoma, ao qual ele reduz a função fálica: fixação feita “toda” pelo dito homem, e não-toda pela dita mulher. Este é um dado histórico? É o patriarcado que gera o primado da referência fálica? A hipótese de Lacan (2) o relaciona a um efeito de linguagem sobre o falasser. Mortificando o vivente, o significante produz um limite que se impõe ao gozo de cada um - parcialmente, totalmente ou de modo algum (ele pode falhar). A conexão do gozo com a linguagem, que une a perda traumática do vivente (a) e sua cifragem significante (S1), constitui o que Lacan designa como a função fálica em seu último ensino (3). Embora de maneira diferente, ela vale tanto para o homem como para uma mulher. Ela é própria ao falasser qualquer que seja a conjuntura social na qual é construída (4). No entanto, ela leva a abordar o gozo, destaca Jacques-Alain Miller, "pelo lado onde ele é interditado" (5); enquanto P. B. Preciado o gostaria ilimitado.

Considerando que "a pornografia diz a verdade da sexualidade" (6), P. B. Preciado postula, escreve Sophie Marret-Maleval, um corpo gozante "capaz de escapar da influência do significante", que o leva a "visar a correlação entre verdade e gozo", na busca pela "desalienação total" (7). A existência de um corpo biológico natural, não tocado pela linguagem, está no início de suas hipóteses; a partir de então, ele o concebe aberto a todas as construções possíveis. Na sua perspectiva, ele mesmo, hoje Paul, Beatriz ontem, o gozo é mal limitado por escolhas identitárias, voluntárias, temporárias, reversíveis e estendidas ao infinito. Por outro lado, segundo Lacan, existe um limite com o qual é preciso compor. Na época do Outro que não existe, fica claro que esse limite não é determinado por uma ordem simbólica. O modo de gozo, para a maioria dos sujeitos, se encontra restrito e limitado por uma captura contingente e singular a um significante. Disso resulta uma constatação: um modo de gozo próprio a cada um. Uma das conclusões mais seguras do passe, já esclarecida por Lacan, revela a produção de "esparsos disparatados" (8) e desfaz a ilusão de uma travessia comum.

A diatribe de P. B. Preciado certamente se baseou em uma leitura rápida de Lacan, que tendia a congelar sua abordagem em um binário da sexuação; no entanto, sua inserção em 2019, em um congresso de psicanálise, não pode ser considerada um evento menor. Os aplausos que pontuaram positivamente seus comentários várias vezes atestam que eles não deixaram de ecoar em um grande público. Por mais questionável que nos pareça seu discurso, ele não deixa de ter uma grande repercussão sobre os sujeitos cada vez mais numerosos que aderem a ele: ele modifica alguns de seus comportamentos e às vezes transforma voluntariamente seus corpos.

B. Preciado iniciou sua intervenção formulando questões que não devemos negligenciar muito rapidamente: quantos analistas da Escola (AE) (9) são homossexuais (10)? Quantos AEs são transexuais (11) ou transgêneros? É certo que o passe implica uma desidentificação que exclui se apresentar sob esses significantes, mas é ele compatível com esses modos de gozo? Como um analista que conhece hoje seu nó subjetivo não borromeano pode abordar o passe? Como nenhum EA até agora se apresentou assim, a escolha se reduziria para ele, em renunciar a se introduzir na experiência ou em dar uma forma neurótica ao seu testemunho? Nos dois casos, a investigação de Lacan sobre se tornar um analista sofre um abalo. Não há dúvida, porém, que no século XXI os gozos que determinam a passagem ao analista demonstram uma diversidade que vai muito além dos modos de gozo do século passado. Por que, por exemplo, uma substituição não poderia levar a isso?

A referência continuinista certamente forneceria uma solução fácil: seria suficiente no passe destacar o S1 do sinthoma sem se preocupar com as diferenças de funcionamento subjetivo. No entanto, trata-se de não ignorar a distinção entre o sinthoma "desabonado do inconsciente" (12) e aquele que, ao contrário, está articulado a ele. Até então, os passes parecem tratar apenas os últimos.

Além disso, uma discussão sobre a relevância do conceito de sinthome no autismo poderia ser evocada (13). O que o autismo tem a ver com o passe? Lembremo-nos de Jacqueline Léger, convidada da Primeira Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Autismo (CERA) (14). Ela nos disse que, após uma longa análise, trabalhou por muitos anos como psicóloga clínica de formação analítica. Certamente ela não deu o passo para se tornar uma analista. Mas outras pessoas autistas o farão, se já não o tiverem feito. Quanto a saber se a prática de analistas não neuróticos irá se deparar com limites, a questão merece ser levantada. Seria muito ilusório, no entanto, supor que os analistas neuróticos nunca iriam se deparar com limites - se eles fossem bem analisados.
P. B. Preciado chamou nossa atenção para a estreiteza do modelo no qual o passe seria baseado.

Devemos afirmar, contra a experiência, que a prática analítica é reservada aos neuróticos? Isso é pouco provável, exceto para retornar ao ato de Lacan que institui uma autorização que se baseia em uma decisão do analista. Portanto, por que limitar a investigação desejada por Lacan sobre tornar-se analista? Suas modalidades de ontem ainda são as de hoje? Não se costuma dizer que o passe não pode ser a verificação de qualquer conformidade? Levar Lacan a sério quando ele convida quem recorre à psicanálise a "alcançar em seu horizonte a subjetividade de seu tempo" (15) não implica uma renovação contínua do passe? - à semelhança por exemplo de um posicionamento acolhedor do casamento para todos. Certamente, nada proíbe um homossexual, um transexual, um transgênero, ou um autista de se apresentar a um passe, mas na prática eles não passam por ele, não o atravessam ou mesmo não o declaram. Pois o AE ainda não está obrigado a aderir a uma parte da ordem simbólica?

Uma dificuldade, no entanto, P. B. Preciado não deixou de enfatizar: os entrelaçamentos sempre persistentes da teoria psicanalítica com o discurso da psiquiatria. Como apresentar-se ao passe dando a entender que se é psicótico, perverso ou autista? Obviamente, o processo é dificultado por esses significantes. A ampliação do passe leva então à premissa de uma mutação da denominação dos funcionamentos subjetivos? Deveríamos falar de estrutura repressiva ou substitutiva? (16) Talvez seja melhor, para produzir uma ruptura mais radical, distinguir apenas entre o nó borromeano, o nó não borromeano e o nó pela borda?

Todas essas questões complexas sobre o passe e nossa terminologia hoje estão surgindo com maior força. Ainda é muito cedo para levantá-las? Mas quando chegará o momento certo? Devemos temer que elas abram um abismo? Ou devemos tentar entender melhor uma mutação já em andamento? A escolha que nos é oferecida é de sufocá-las, o que não as impediria de surgir, ou acompanhar seu progresso, sem deixar de considerá-las. Temos que ter cuidado para não deixar de ouvir a intervenção de P. B. Preciado: ele veio lembrar a psicanálise da necessidade de evolução permanente. Os modos de gozo são tributários das mudanças sociais. Também Lacan nunca para de apontar que "o inconsciente é a política" (17)!


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1- São os psicanalistas que dizem se referir a Lacan tendo uma abordagem essencialista da sexuação que fazem com que a transexualidade seja considerada “uma loucura”: segundo Frignet: “é impossível não ser um homem ou uma mulher. A essa primeira impossibilidade, se soma uma segunda: a transformação exterior e o desejo pessoal do sujeito, é impossível modificar esse pertencimento. Somente a aparência será mudada, o sujeito, queira ou não, será para ele mesmo e para os outros, um homem ou uma mulher” (Frignet H., Le transsexualisme, Paris, Desclée de Brouwer, 200, p.149 & 128)
2 - A abordagem lacaniana da sexuação, como qualquer teoria, se baseia em hipóteses indemonstráveis, isso vale também para a teoria de gênero. Invocar a experiência analítica em favor de uma, ao invés da outra, seria recorrer ao que Lacan chamou de “carta marcada da clínica” (Escritos, p. 815).
3- “O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho de pau em questão, com a função da fala”. (Seminário 23, p.16)
4- Ganharíamos no século XX em acentuar a abordagem lógica da função fálicas, que a reduz a uma barra sobre o gozo operado por uma cifragem significante, a fim de destacá-la mais radicalmente de qualquer imagem peniana.
5- J.-A. Miller, “Orientação Lacaniana, O Partenaire-sintoma” (1997-1998) lição de 18 de março de 1998
6- Preciado, B. Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique. Paris, Grasset, 2008, p. 218
7- Marret-Maleval S. “Sur Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique de Beatriz Preciado”, Ornicar? 58, 2018, p. 195-198
8- Lacan, Outros Escritos, p. 569
9-AE: título concedido por três anos àqueles cujo percurso e o fim da análise têm valor de ensino, ao final do procedimento do passe, instituído por Lacan, por sua vez, os passadores, analisandos ainda em análise, transmitem ao cartel do passe o testemunho do passante.
10- No que diz respeito ao sujeito homossexual, Miller afirma que a psicanálise visa “essencialmente obter que o ideal deixe de impedir o sujeito de praticar seu modo de gozo, [...] aliviar o sujeito de um ideal que o oprime por ocasião e colocá-lo em posição de sustentar seu mais-de-gozar, o mais-de-gozar que ele é capaz, o mais-de-gozar que lhe é próprio, ter uma relação mais confortável” (Miller & Laurent, O outro que não existe e seus comitês de ética, lição de 21 de maio de 1997, publicado em espanhol). Não compartilhamos as opiniões dos psicanalistas que afirmam ser capazes de identificar o normal e o patológico, tal como Charles Melman no jornal Le monde de 01 de outubro de 2005: “Façamos uma pergunta simples, a homossexualidade constitui uma patologia? É o que psiquiatria americana hoje rejeita. Se admitirmos que ela está organizada por uma defesa contra a diferença e a alteridade, neste caso, é incontestável que ela constitui”.
11- Quando a psicose ordinária é suplantada, por exemplo por uma transexualização bem assumida, ela constitui um dos modos de conformidade social, e nada autoriza a considerá-la como uma patologia. (ver Maleval J.-C., « Du fantasme de changement de sexe au sinthome transsexuel », Repères pour la psychose ordinaire. Paris, Navarin, 2019, p. 186-208).
12- Lacan J., « Joyce le symptôme I », em Joyce avec Lacan, Paris, Navarin, 1987, p. 24
13- Parece que a cura do autismo permite às vezes não liberar o S1 de um sinthoma, mas sim construir um S1 como síntese.
14- Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre o Autismo, Paris, 10 de março de 2018.
15- Lacan J., « Fonction et champ de la parole en psychanalyse » (1953), Écrits, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 1966, p. 321.
16 : Cf. Maleval J.-C., Repères pour la psychose ordinaire, Paris, Navarin, 2019, p. 199-200.
17 : Lacan, Seminário 14, lição de 10 maio de 1967, disponível no blog Lacan em .pdf




Tradução para o português por Arryson Zenith Jr.




Versão original em francês disponível em: https://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2019/12/LQ-856.pdf


Para ter acesso à intervenção de Paul B. Preciado na 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana, acesse: http://lacanempdf.blogspot.com/2019/12/paul-b-preciado-intervencao-na-49.html



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Paul B. Preciado e sua epistemologia mutante


Mutante é um significante central para refletir sobre o mote que orientou o discurso de Paul B. Preciado em sua conferência de abertura na École de la Cause Freudienne (recentemente publicada na Lacuna – uma revista de psicanálise). Antes de mais nada, é fundamental reconhecer o vigor da instituição que lhe fez o convite. Notar que a escolha implicava criar zonas de tensões e intensos atritos, sempre bem-vindos quando a perspectiva é a de ir mais longe afetiva e intelectualmente. Não era um(a) psicanalista da casa a dirigir-se à plateia, alguém que reiterasse o conhecido feijão com arroz do vocabulário psicanalítico em belas composições gramaticais, capazes de reapresentar conhecidas posições – o que também, diga-se, não é de todo dispensável, pois num momento politicamente difícil como o que estamos vivendo globalmente, temos de rememorar e reinscrever frequentemente o que orienta eticamente a prática e a escuta psicanalíticas e o pensamento articulável em torno delas. Em todo caso, a decisão de convidar Paul B. Preciado demonstra a força a partir da qual a psicanálise se faz viva e aberta aos desdobramentos simbólicos e históricos que exigem uma reelaboração teórica contínua do ofício a que se presta. A presença de Paul B. Preciado naquele contexto implicava colocar o arsenal psicanalítico à prova, reconhecer limites de seu repertório conceitual, conceder lugar de escuta ao Outro, estrangeiro ao campo e capaz de dar corpo ao que se mantém latente ou quase abafado entre nós. Tratou-se, em suma, de uma escolha distanciada de moldes narcísicos.
Por isso, a excelente escolha de convidá-lo deveria ser levada até suas últimas consequências. Invalidar subsequentemente o que Paul B. Preciado trouxe de embaraçoso para a comunidade psicanalítica é gesto menor, pouco suscetível ao que faz borrar a imagem especular das instituições e que poderia abrir importantes veredas clínicas e teóricas para todos nós. Reativar todo o repertório gramatical psicanalítico só para atacar a verdade – sempre não-toda, vale frisar – daquele dizer é, então, perder oportunidade valiosa. Sim, pois colher a verdade que porta um discurso implica estar aberto aos efeitos que ele promove, por mais incômodos que estes possam ser. Algumas mais virulentas, outras mais ponderadas, as respostas dadas por psicanalistas à crítica feita por Preciado apresentaram alguns bons argumentos. Entretanto, o que ressoa também, em grande parte delas, é um certo tom defensivo e da pior espécie. Compreendidos aqui psicanaliticamente, os mecanismos defensivos, não nos esqueçamos, são quase sempre conservadores. Revelam, como se sabe, uma insistência em velhas soluções de compromisso, ineficazes para abarcar o que vibra de inédito nos percursos desejantes.
Pedro Vermelho, o macaco kafkiano, é um mutante. É com ele que Paul B. Preciado se identifica ao performar sua posição diante da plateia de membros da École de la Cause Freudienne, espirituosamente comparada à “Academia das mais altas autoridades científicas”, que aparece no conto escrito em 1917 pelo autor tcheco. Como avatar, Paul B. Preciado mostra os ranços normativos que ainda pairam na abordagem psicanalítica da sexualidade e, por conseguinte, da própria subjetividade. Sua verdade emerge encarnada na metamorfose visível de seu corpo-linguagem. Seu desejo não está apenas impresso nos significantes que emprega, mas no caráter mutante que assume seu corpo-linguagem.
É certo que sempre existirá o argumento da materialidade ou corporeidade da linguagem ou da inexistência de um corpo que esteja destituído das marcas linguísticas. Não se trata de acionar, por conseguinte, a dicotomia corpo/linguagem ou natureza/cultura. Trata-se, isso sim, de escutar as bases sobre as quais se sustentam sua linguagem. A célebre frase de Lacan em “Aturdito”, “que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se ouve”, aponta já para o fato de que o dizer, demonstrável por escapar ao dito que se ouve, tem a capacidade de complexificar e enriquecer a noção mais contemporânea de “lugar de falaO real que comanda a verdade da enunciação de Preciado não foi colonizado pelos moldes identitários, como muitos psicanalistas insistiram em sugerir. O real de seu dizer está entranhado em cada pedaço de sua carne tecnológica e farmacologicamente modificada, em cada órgão transfigurado, em cada palavra vociferada pelos efeitos fármaco-hormonais. Trata-se de um dizer trans não apenas pelo fato de o portador daquelas palavras ser concretamente um homem trans, mas pelo fato de que sua transmutação subjetiva é ela mesma uma incisão cirúrgica de caráter revolucionário em termos políticos e epistemológicos. Uma política interseccional que emanará de uma conjunção de vozes oprimidas até transfigurar o colorido, o tom, a forma e a estrutura de todas as bases nas quais ainda nos apoiamos. Sim, pois – e agora voltamo-nos à crítica feita por ele à psicanálise – ainda apelamos ao universal e operamos pela sua lógica que, como disse Lacan, sempre se nega em cada expressão singular. O contorno universal – pensado tradicionalmente pelas vias da Lei paterna – é o que dará condições ao sujeito de assumir uma expressão singular, que escapará daquela universalidade, mas que só a partir dela se constituirá.
Embora a tensão dialética entre universal e singular também se faça presente no discurso de Paul B. Preciado, toda sua estrutura materialmente mutante propõe outra lógica. Sua voz metamorfoseada vibra para compor-se com outras vozes mutantes, mostrando que o dito e o dizer do inconsciente podem mais do que Freud ou Lacan pensaram. Embora suas críticas tenham sido contundentes, Paul B. Preciado não fez da crítica à Lei que orienta as instituições de psicanálise seu alvo principal. Seu dizer emanado de seu corpo trans já carrega novas ferramentas, concede corpo a outra epistemologia. Não é uma provocação sobre a falta de democracia das instituições psicanalíticas que está em jogo quando ele afirma: “não sei se vale a pena que se diga também bom dia a todos aqueles que não são nem damas nem cavalheiros, porque creio que não há entre vocês alguém que haja renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista”. Fosse este o caso, bastaria proceder a um programa de inclusão de minorias. Entretanto, o que a ausência completa de corpos trans ou queer numa plateia inteira de psicanalistas revela é a inexistência de ferramentas hoje imprescindíveis para pensar rumos civilizatórios alternativos aos estabelecidos pelos pilares patriarcal-heteronormativo e colonizador-europeu. Tais ferramentas não são trazidas apenas numa liberdade discursiva do desejo. É necessário que o corpo que se movimenta por este mundo e a linguagem que atravessa a carne do sujeito também estejam impregnadas de tais transfigurações.
Ainda que a psicanálise seja um saber que coloque em suspensão alguns fundamentos patriarcais, não seria muito honesto negar que a epistemologia psicanalítica se rende a tais rudimentos carcomidos. O pensamento em torno da noção de complexo de Édipo possui, de fato, em Freud, fortes conotações patriarcais. É ao dado anatômico que Freud remete a possibilidade de fazer uma travessia do complexo de Édipo que seja compatível com as tarefas éticas e estéticas implicadas na cultura e, por conseguinte, no campo do que pode ser tomado como público. Não é, contudo, à perpetuação do patriarcado que se resume o pensamento envolvido no complexo de Édipo. Em seu coração situa-se o desejo diante do caráter traumático da sexualidade, da ruptura inerente ao fato de que falamos e da necessidade, experimentada pela criança, de tomar alguma distância com relação a seus primeiros objetos de amor, construídos e apropriados numa profunda relação de dependência. Ao estruturalizar o Édipo e pensar funções em vez de indivíduos, Lacan avança em relação a uma desnaturalização da experiência que não apenas é mais coerente com a forma pela qual narramos nossos desejos, mas também mais rica do ponto de vista político. Trata-se de algo que também lhe permite reconhecer a interdição como um expediente de que nos valemos para lidar com o desamparo que marca a situação de vida na qual somos lançadas. Porém, o que Lacan permitiu enxergar ainda não é suficiente porque, ao caracterizar um certo gozo como masculino e outro como feminino, ele preserva a equivalência entre cultura e masculinidade. E é nesse sentido e nesse lugar preciso de convocar à destituição dessa equivalência – convocação que, lembremos, Preciado não é o primeiro a fazer – que, para nós, se situa a força de sua fala.


É certo que a equivalência entre cultura e masculinidade precisaria ser desdobrada. Aqui, porém, basta dizer que, para Lacan, ninguém tem o falo, exceto a cultura. Ou seja, a cultura, ela mesma, é sempre lida pelo registro fálico. Isso se expressa de modo central nas fórmulas da sexuação, propostas pelo psicanalista francês em 1973, no Seminário 20.

Se nos referimos apenas ao primeiro nível de sua escrita, vemos que elas trazem, de cada lado (lado Homem e lado Mulher), uma proposição quantificada existencialmente e outra quantificada universalmente. As universais trazem os seguintes conteúdos, respectivamente: para todo x, x é Φ (a letra grega escreve aqui a função predicativa “… ser submetido à castração”); do lado mulher: não todo x é Φ. Seguindo o léxico da lógica, tem-se, portanto, que as universais “para todo x, x é submetido à castração”; “não todo x é submetido à castração” (Lacan altera aqui o modo de usar a negação com o universal). São essas proposições universais que fazem parte, então, da distinção entre Gozo fálico (Homem) e Gozo Outro (Mulher).
Vale lembrar que, de acordo com Lacan, não há realidade pré-discursiva e, por conseguinte, os significantes ali empregados – Homem e Mulher – cumpririam funções de semblante, isto é, tais substantivos não teriam quaisquer correspondências com a anatomia ou algum tipo de caráter essencialista dos sujeitos. Grosso modo, essas formulações lógicas podem ser traduzidas nos seguintes termos comuns: a articulação do homem se dá, de um lado, pela exclusividade do Gozo fálico e, de outro, pelo conjunto de todos os homens castrados. O conjunto de todos os homens equiparáveis em sua condição de castração só pode se moldar por uma exceção à regra, isto é, por alguém que emerge num lugar fora e dentro do conjunto categorial universal – um homem não-castrado. Na psicanálise, a figura não-castrada é mítica e, portanto, inexistente. Trata-se do Pai Primevo da horda primitiva, tal como pensada por Freud em Totem e tabu.
Na composição lógica da mulher, não se trataria mais do Gozo fálico, mas sim do Gozo Outro ou Gozo feminino. Foge-se aqui da lógica dialética entre conjunto ou classe categorial de todos os homens castrados (universal) e a exceção de um Pai Primevo não-castrado em seu Gozo (particular). O Gozo Outro seria, então, não-todo e giraria em torno do falo, significante primordial. Com tal articulação, Lacan supõe estremecer a noção de mulher, afirmando que “Ⱥ mulher não existe”. Para ele, tal axioma busca evidenciar o fato de que não haveria como falar d’A mulher no interior de um modelo universal, tal como vimos na formulação do conjunto de homens equivalentes na condição castrada. No caso da mulher, haveria apenas a singularidade, capaz de organizar o feminino a cada vez. Se o homem deposita na mulher uma função de objeto causa do desejo (objeto a), aquilo que o fisga e o convoca, a mulher tomaria o homem no lugar de falo. Daí advir o outro axioma lacaniano, segundo o qual, “a relação sexual não existe” – nesse desajuste não há encontro que esteja apto a formar Um.
Seria possível desmontar de diferentes modos esses preceitos que congelam logicamente certos problemas históricos e ideologicamente complicados para os atuais debates em torno da questão de gênero. A crítica mais óbvia e imediata que poderia ser formulada é: como o psicanalista francês, que concedeu lugar central à linguagem e ao impacto dos significantes para o sujeito do desejo, pode utilizar do evasivo argumento de que emprega os significantes Homem e Mulher quase aleatoriamente, visando tratar de diferentes posições do sujeito? De todo modo, independentemente de quem as viva – Homem, Mulher, Trans, Bissexual, Intersexo, Queer, Gay, Lésbica –, ambas as modalidades de Gozo – o fálico e o Outro – são formulações abstratas que reiteram, sim, a subdivisão binária do patriarcado. A crítica de Preciado não atinge, por conseguinte, apenas corpos héteros, mas a reprodução dos velhos moldes de poder e de Gozo que ocorrem dentro desses registros lógicos nas mais variegadas formas de semblantes. Seguindo por aí, outra crítica incontornável é a já mencionada correspondência entre falo e cultura ou, em termos mais precisos, o fato de que, para Lacan, só a cultura tem o falo.  Ora, não existe aí outro fundamento para a articulação que ele faz entre o falo, pela via da castração, e o termo “todo” a não ser o próprio fato contingente (que, portanto, não se deduz) da prevalência histórica do patriarcado. As coisas se passam aqui como se Lacan transformasse uma contingência histórica em necessidade lógica.
Por isso, é decisivo para a psicanálise, hoje, conseguir enxergar e encontrar formas de lidar com a tarefa que Preciado nomeou como “despatriarcalização”. De um lado, disso depende sua sobrevivência. De outro, essa sobrevivência é fundamental porque fazer de conta que a divisão da subjetividade não existe corresponde talvez aos piores dados de partida e às mais indesejáveis formas de fazê-la operar.
Alheio a esse engessamento lógico que reitera modelos patriarcais e à ideia de que a inexistência de realidade pré-discursiva implique necessariamente a ausência de corpo-carne, todo ele, entranhado de linguagem e técnica, Preciado carrega na materialidade transfigurada discursiva e tecnologicamente nem um homem, nem uma mulher, mas sua condição mutante ou trans, portando uma verdade Outra, que escapa às regras daquela lógica constantemente torcida para manter alguns de nossos velhos lugares.

Alessandra Martins Parente, psicanalista, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP
Léa Silveira é professora de Filosofia na UFLA e doutora em Filosofia pela UFsCar

Sobre o conceito de história em Walter Benjamin

"Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos de bens culturais [...] todos os bens culturais que ele [o materialista histórico] vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (Benjamin, 1985: 225)."

Tese 7 "Sobre o conceito de história", Walter Benjamin